O universo de RPG de Mark Rein-Hagen, com Vampiro: A Máscara e Lobisomem: O Apocalipse como os mais conhecidos, influenciou bastante a Cultura Pop em geral, conforme abordamos no artigo que enfoca suas relações com os quadrinhos, mas o assunto ainda não acabou. Que tal voltar a atenção agora ao cinema?
Anjos da Noite (Underworld 2003)- Assim como Drácula ganhou Nosferatu como adaptação não oficial em 1922, Vampiro: A Máscara também se tornou filme, mas não pelas mãos de Mark Rein-Hagen. Anjos da Noite apresentava a história de Selene, uma vampira adotada pelo vampiro ancião Viktor, que alegava tê-la salvado de um ataque feito à sua família original por Lycans, termo denominador de lobisomens no filme. Na verdade, Viktor matou os pais verdadeiros de Selene, mas não teve coragem de executá-la ainda bebê e acabou por adotá-la, colocando-a na guerra contra os lupinos.
Talvez por mera coincidência, a história de Selene se pareça muito com a de Mime de Benetnasch (Guerreiro Deus da Saga de Asgard, dos Cavaleiros do Zodíaco), que empunhava uma harpa e havia sido adotado pelo assassino de seus pais, mas as semelhanças com Storytelling passam longe de mera coincidência. A treta entre vampiros e lobisomens, a caracterização dos monstros – sendo os lupinos mais bucólicos, sem perder o vínculo com as cidades e a tecnologia (como as tribos Andarilhos do Asfalto e Roedores de Ossos) e os vampiros mais urbanos – o casamento entre as duas espécies (representado no personagem Michael Corvin, que resulta em um amálgama de vampiro e lobisomem chamado, assim como no livro, de Abominação), o possível retorno de um ancião, remetendo à ideia dos Antediluvianos… enfim, a impressão que dá é que os caras fizeram o filme que queriam assistir e entregaram ao público: “Aí, galera! Tá aí o filme que vocês queriam!” – só que não!
Alerta! Os comentários sobre DEIXA ELA ENTRAR contém spoilers! Caso isso seja inconveniente para você, pule para o exemplo seguinte e volte após ver o filme!
Deixa Ela Entrar (Låt Den Rätte Komma In – 2004)- No subúrbio de Estocolmo, Suécia, um menino tímido e solitário chamado Oskar, de 12 anos, sofre vítima bullying, quando este termo ainda nem era usado, já que a história se passa em 1982. Acaba por conhecer Eli, uma suposta menina que se muda para a vizinhança, embora as condições de seu apartamento, desprovido de mobília, dão a impressão de ser uma ocupação. Eli não tem pais e seu único tutor é Håkan, um senhor que nunca é visto ao seu lado, mas a visita regularmente para lhe deixar algum sustento, seja em dinheiro ou alimento. Ao menos é isso que Oskar imagina.
Na verdade, Eli é um menino vampiro castrado há muito tempo e Håkan é seu Carniçal, que envelheceu ao longo dos anos e parece servir à Eli desde a idade de Oskar. O conceito de Carniçal (Ghoul, no original) foi desenvolvido por Rein-Hagen para definir um indivíduo que, bebendo o sangue de um vampiro, adquiriria força e velocidade superiores a qualquer ser humano (além de outras Disciplinas em nível inferior), suspensão do envelhecimento, embora também adquirisse repulsa aos alimentos, uma ligeira fotofobia, e a dependência do vampiro em questão que exerceria poder sobre ele.
No filme, Håkan não bebe sangue ou possui super poderes, mas sua dependência é muito mais sutil, e se dá por um voto de fidelidade, como se amasse Eli desde sua juventude, provavelmente com a idade de Oskar. Ao suprir as carências emocionais do menino, ajudando-o com o bullying, Eli intenta substituir seu servo por alguém mais jovem, até que tenha que fazer o mesmo com ele no futuro. Alguém duvida que Håkan e Oskar são carniçais? Apesar dos spoilers em demasia, assista ao filme se ainda não o fez. Você vai se surpreender com a mais bela estória de vampiros já escrita.
Crepúsculo (Twilight – 2008) & A Saga Crepúsculo – Lua Nova (The Twilight Saga: New Moon – 2009)- O fato de Edward Cullen provir de uma família que não bebe sangue de humanos, apenas de animais, remete à Linhagem Filhos de Osíris, apresentada no livro Os Caçadores Caçados (The Hunters Hunted), de 1992. Em um certo momento da “vida”, Edward, como todo bom adolescente, abandona a tradição familiar e passa a se alimentar de sangue humano, mas matando apenas aqueles que merecem morrer. Qual o critério? Bom, é que Edward lê as mentes das pessoas e descobre seus desejos mais nefastos ou atos mais pavorosos. Esta habilidade se traduz no Clássico Mundo das Trevas, o universo do RPG, como a Disciplina (conjunto de poderes vampíricos) Auspícios. A ideia de não beber sangue humano de forma indiscriminada pertence à Linhagem Salubri, (também portadora da Disciplina Auspícios) embora esta o faça (segundo o Guia dos jogadores, de 1993) com o consentimento da vítima ou quando esta está dormindo.
Na continuação, Lua Nova, Edward Cullen, fica enciumado com Jacob Black, um lobisomem da tribo Quileute. O infame triângulo amoroso entre o casalzinho vampiro e o lobisomem tosado só consegue chupar mais uma vez a ideia de Mark Rein-Hagen: a treta entre vampiros e lobisomens.
Em sua forma lupina, os lobisomens são lobos gigantes, como os Wargs, os Lobos de Isengard de O Senhor dos Anéis; a fonte de inspiração para a Forma Hispo e talvez para a tribo dos Dançarinos da Espiral Negra, do livro Lobisomem: o Apocalipse. Não comentarei mais sobre a saga Crepúsculo, porque fiquei com medo de assistir.
A Garota da Capa Vermelha (Red Riding Hood – 2011)- Desde que Alan Moore resolveu lançar o seu polêmico Lost Girls, traçando as peripécias sexuais de Alice, do País das Maravilhas, Dorothy do Mágico de Oz e Wendy, de Peter Pan, tivemos alguns filmes fazendo uma releitura das antigas fábulas fora do universo infantil, embora nenhum tenha tido a profundidade da obra de Moore. Tivemos o flerte entre Branca de Neve e o Caçador; o político americano que “mitou” em Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros; Jack, o Caçador de Gigantes e até um João diabético em João e Maria: Caçadores de Bruxas. Mas antes de todos estes, A Garota da Capa Vermelha, além de apresentar novamente o lobisomem na forma Hispo, tentou repaginar a Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau, mas só conseguiu uma versão lupina de Crepúsculo. Uma abominação!
Wolves (2014)- (Veja o trailer) Quando o jovem Cayden Richards sofre uma falta durante uma partida de Futebol Americano, perde a calma e literalmente voa para cima do adversário e desce o braço até amassar seu capacete de proteção, para espanto da plateia. Dias depois, em um amasso com a namorada, ele a morde no canto da boca, tirando sangue da pobrezinha que, ao olhar novamente para o rapaz, percebe que seu rosto sofreu algumas… alterações. A moça sai do carro correndo, deixando Cayden atônito, sem poder ao menos pedir-lhe desculpas.
Decepcionado e já destransformado, o jovem vai pra casa dormir pois é o que lhe resta da noite, que foi uma decepção. Acorda, no meio da noite, ensanguentado, e descobre seus pais esquartejados na sala. Sem contar que a polícia já está em seu encalço, pois sua namorada contou o que ele fez. Está claro que seu comportamento foge ao normal e, embora a estória seja absurda aos ouvidos dos policiais, nada mais convincente do que uma mocinha em perigo.
Até aí tudo bem. O personagem é apresentado em camadas e sua gradativa transformação é tão assustadora para ele mesmo quanto para as pessoas que o cercam; menos para nós espectadores, já que, convenhamos, desde Um Lobisomem Americano em Londres, nenhuma transformação licantrópica é convincente a ponto de realmente causar calafrios.
Saudosismos à parte, voltemos ao cerne da questão. A ideia do lobisomem se transformar durante a puberdade já havia sido explorada no filme O Garoto do Futuro (Teen Wolf), de 1985, e é trabalhada com maestria na obra de Mark Rein-Hagen. O início do livro Lobisomem: O Apocalipse mostra uma história em quadrinhos onde o garoto Evan, após uma transformação durante o sono, acorda no meio da rua, já no estado normal, e volta pra casa, onde encontra os pais acordados, mortos de preocupação.
Fora de si, o pai desfere um tabefe na cara de Evan e o adverte de que, se isso voltar a acontecer… é quando a casa é subitamente invadida, não se sabe bem por onde, por Dançarinos da Espiral Negra, lobisomens outrora honrados da extinta Tribo Uivadores Brancos, que caíram em desgraça tornando-se anátemas da sociedade Garou, o termo como os lupinos se autointitulam. No decorrer da estória, sabe-se que os Garou podem viajar pelo Plano Astral denominado Umbra. Os Espirais Negras esquartejam os pais de Evan, que foge apavorado.
Em Wolves, Cayden Richards já encontra os pais mortos. Fica a dúvida se foi ele quem os matou. Essa temática já foi explorada em outras obras midiáticas como a HQ Girl, de 1996, escrita por Peter Milligan e desenhada por Duncan Fegredo e no filme brasileiro Nina, de 2004, dirigido por Heitor Dhalia, que o roteirizou com Marçal Aquino, sendo a personagem vivida pela atriz Guta Stresser.
As comparações entre o filme brasileiro e a HQ lançada anos antes podem ser brandas, mas não resta dúvida da influência do RPG na confecção do enredo que, além de chupar uma cena, encaminha o protagonista numa jornada para conhecer a sociedade dos lobisomens e desvendar sua verdadeira natureza e origem. Veja o filme e tire suas próprias conclusões. Isso se você conseguir assisti-lo até o final.