Todos nós temos sonhos e ambições na vida. Aquela vontade de conquistar algo ou atingir um determinado objetivo, que é a força motriz que nos faz levantar da cama todas as manhãs e sair de casa e nos esforçar, trabalhar, lutar. Da mesma forma que todos temos sonhos e ambições, todos nós temos talentos e habilidades. Aquele algo a mais com que já nascemos e nem precisamos de muito para desenvolver. Pode ser algo banal, como uma habilidade nata para empilhar castelos de cartas – ou pode ser uma habilidade incrível o bastante para torná-lo um medalhista olímpico, por exemplo. Assim, nossas vidas são dirigidas pela união das nossas habilidades aplicadas aos objetivos que queremos atingir, os sonhos que queremos tornar realidade.
O problema, amigo leitor, é que nós dois sabemos que quase nunca nossas habilidades estão de acordo com os nossos sonhos mais loucos. Você pode não ter nem passado da peneira da escolinha para jogar no seu time do coração – a minha banda também certamente não decolou, visto que eu estou trabalhando aqui. Pobre Marguerite Dummont. Como nós dois, ela tinha um sonho – mas nenhum talento.
Em Marguerite (idem), do bom diretor Xavier Giannoli, nós temos uma espécie de Crepúsculo dos Deuses (que já foi tema do nosso videocast) às avessas – enquanto a Norma Desmond de Gloria Swanson se iludia com o possível retorno às telas em um filme ruim, que emulava os seus tempos de glória quando todos a admiravam, a Marguerite Dummont da maravilhosa Catherine Frot vive uma glória tão falsa quanto seu talento, sustentada por pessoas que oscilam entre a pena pela figura patética da cantora e ambição sobre a sua fortuna.
“Cantora”, na verdade, é um eufemismo. Marguerite é tão boa cantora quanto você amigo leitor, era bom futebolista. No society você até conseguia marcar um ou outro gol, mas nós dois sabemos que era pura sorte do seu pé torto. Já nossa protagonista, ao contrário dos seus gols capengas, não consegue acertar uma nota sequer. Assassina impiedosamente, mas sem perceber, alguns dos maiores clássicos da música erudita.
Tudo com a absoluta indulgência de todos que a cercam – seu marido, interpretado por André Marcon, um adúltero que depende de sua fortuna para tocar os seus negócios; Madelbos (Denis Mpunga), o fiel mordomo, apaixonado pela pretensa figura épica de sua ama; Hazel Klein (Christa Theret), uma promissora e talentosa cantora, que na sua inocência não percebe as consequências da indulgência em relação a Marguerite; o Círculo Amadeus, um grupo de pessoas ricas da França que tolera as exibições privadas de Marguerite para parasitar sua fortuna, além de Lucien Beaumont (Sylvain Dieauide) e Kyrill Von Priest (Aubert Fenoy), respectivamente um jornalista e um artista de vanguarda, que percebem todo o ridículo da condição de Marguerite, mas tomam rumos distintos; enquanto Lucien decide tirar proveito, Kyrill decide usar o “talento” e a completa alienação de Marguerite como um símbolo de subversão às artes clássicas – algo típico dos artistas de vanguarda da década de 20 do século passado.
É aí que começam os problemas. Marguerite, incentivada por Kyrill, está decidida a fazer uma apresentação pública. E todos estão preocupados, pois tudo é engraçado enquanto está restrito a um pequeno grupo de pessoas – mas uma apresentação pública da voz bisonha dela destruiria sua reputação. Entra em cena Atos Pezzini, o divertidíssimo Michel Fau, um decadente cantor de ópera que é chantageado a assumir uma missão impossível – ensinar Marguerite a cantar.
O filme é dividido em capítulos, que começam quando a protagonista está completamente imersa no seu delírio, até o momento em que o confronto com a realidade vai aos poucos demolindo sua autoconfiança e seu amor pela arte. Vão se tornando progressivamente mais sérios conforme a iminência da apresentação – como se o véu que protegia os sonhos de Marguerite fosse caindo aos poucos, dando lugar a dura realidade. Os risos condescendentes do público dão lugar a uma tensão perene de expectativa. Não à toa, a ária que vemos Pezzini cantando pela primeira vez é Vesti la Giubba, da ópera Il Pagliacci, de Leoncavallo, em que o Palhaço, apesar de toda a tristeza que carrega dentro de si, precisa seguir em frente e fazer o público rir.
Apesar de ser uma comédia, apesar de tudo, trata-se de um filme francês, e como não poderia deixar de ser, o existencialismo está na sua alma. A comédia se sustenta enquanto as escolhas dos protagonistas são mediadas pelas regras de uma realidade que não existe – a da lendária Marguerite Dummont. Quando esta se torna a ordinária Marguerite, a liberdade que os personagens têm em relação às suas escolhas dá lugar a tensão das consequências. Dentro da crítica que se pode fazer ao filme, esse é um ponto relativamente baixo – todo o humor da situação absurda vivida pela personagem principal é absolutamente destruído quando a realidade expõe as consequências das ações dos outros. Gianolli escolhe competentemente todos os elementos, fazendo com que esse filme, assim como sua protagonista, demonstrem ser muito mais do que realmente são.
Existe algo de quixotesco na figura de Marguerite e talvez por isso ela seja uma figura tão carismática. A tenacidade com que ela defende seu sonho é invejável – na verdade, é difícil pensar que qualquer um que tenha chegado ao topo – seja um atleta, seja um grande artista – tenha tido menos resiliência do que demonstra a pretensa cantora. O único problema é a ausência do talento e, tal qual o mítico Cavaleiro da Triste Figura, embora sua jornada seja edificante, ela só se cumpre ao terminar muito longe daquilo que a protagonista esperava de si mesma.
Marguerite é uma parábola. Entre o risível e o trágico, ela representa, de certa forma, a jornada do herói realizada todos os dias por todos nós. Citando o próprio Campbell “As oportunidades para procurar forças mais profundas em nós mesmos vêm quando a vida parece mais desafiadora.”