Van Damme mostra seu lado dramático em Lukas
Não é preciso um currículo muito extenso em filmes de ação para perceber que a maioria de seus protagonistas estão acima de qualquer medo e desafiam as leis da física. Descarregam uma arma inteira em cima de alguns deles e, mesmo se arrastando, sobrevivem e não se entregam até resolver suas vinganças, sejam elas pessoais ou que garantem um cheque de valor bem atraente ao final. Nos acostumamos com esses homens, que muitas vezes passam longe de serem jovens, mas possuem reflexos de dar inveja à muito adolescente. Adaptamos nosso olhar para nos divertirmos como os que fazem justiça com as próprias mãos e, de certa forma, até damos estrelinhas extras aos filmes por conta do nível de frieza desses personagens. Mas eis que surge Lukas (batizado de The Bouncer na terra do tio Sam), novo trabalho do belga Jean-Claude Van Damme.
O nome do ator nos créditos basta para sentarmos diante da tela esperando muita pancadaria e uma atuação sofrível nos momentos dramáticos. Também sofríveis, diga-se de passagem. Mas o diretor francês Julien Leclercq resolveu aprofundar uma qualidade que já podia ser notada em filmes como O Resgate, de 2010, e o ótimo Carga Bruta, de 2015: a fragilidade masculina. E não estamos falando de questionamentos sexuais ou qualquer coisa do tipo. Leclercq não hesita em retratar homens que aparentam não terem temores sucumbindo às emoções.
No caso de Lukas, Van Damme dá vida ao personagem-título sem medo das próprias marcas que o tempo imprimiu em seu rosto. Você pode concordar que vaidade não é marca registrada dos brucutus do cinema, mas nesse caso as cicatrizes e rugas são o retrato de um homem cansado, mas que a vida se encaminha de colocar sempre em alerta para sobreviver. Segurança de uma boate à noite e um pai dedicado, mas meio zumbi, de uma menina de 8 anos durante o dia, Lukas vê sua rotina nada empolgante mudar quando passa dos limites na repreensão à um cliente. Para não ser preso e, principalmente, não perder a guarda da filha, ele aceita ajudar a Interpol a pegar o chefe de uma quadrilha.
Um “bom de briga” cansado
Seria o roteiro perfeito para a pancadaria rolar solta da primeira à última cena. Mas Leclercq já deixa claro desde os créditos iniciais que mostrar Van Damme descendo o braço em caras com o dobro do seu tamanho não é seu foco. É o Lukas que se esconde embaixo do inseparável moletom de capuz que lhe interessa. Cansado de dar e receber porrada, que não vê mais graça (se é que um dia realmente viu) em mostrar seus talentos de lutador. Mas o mundo só conhece o seu lado violento e destemido e ele terá que mostrá-lo para tentar alcançar a tão sonhada paz para criar sua menina.
Mesmo nas cenas de ação, que são poucas mas bem dirigidas, Van Damme, conhecido pela falta de talento com expressões faciais, consegue expressar o quanto todo aquele sangue lhe entedia e não faz sentido algum. É pela guarda da filha que ele corre riscos. Seus silêncios são mais reflexivos do que apenas uma desculpa para não decorar diálogos. As sequência que apresenta o cotidiano de Lukas (o banho, o café da manhã com a filha, o treino e as poucas horas de sono até tudo começar outra vez) não é nenhuma novidade narrativa, mas para o público acostumado ao ataque sem grandes explicações por parte dos personagens de Van Damme, tenham o nome ou a profissão que tiverem, é um outro olhar colocado sobre o ator.
Lukas e Van Damme se confundem, porque transparece que, assim como o segurança que treina no porão da casa todos os dias para não perder o fôlego, o belga estava cansado de convites para ser sempre o mesmo nas telas. Não que sua atuação mereça algum prêmio ou que de agora em diante ele só faça filmes com mais drama que pancadaria. Mas Lukas pareceu a oportunidade perfeita para que ele fosse inserido numa nova proposta de filme de ação. É possível, levada as diferenças de estilo dos roteiros, é claro, um diálogo de Lukas com um dos filmes mais interessantes de 2018.
Você Nunca Esteve Realmente Aqui, da britânica Lynne Ramsay, é bem mais violento e a abordagem psicológica do protagonista impera no roteiro. Mas tanto o condutor do filme de Leclercq quanto o veterano de guerra interpretado por Joaquin Phoenix (de Homem Irracional) tem mais sangue nas veias que nos olhos. Suas crises os perseguem mais que qualquer policial e suas relações com as mulheres, sejam filhas ou desconhecidas, mostram que a incompreensão do universo feminino por parte dos homens de ação não é mais tratada com indiferença dentro do gênero. A fragilidade dos brutos, sempre apagada ou mostrada de maneira piegas demais para ser levada à sério dentro das histórias, torna-se o ponto mais importante. Quem ganha é o espectador, que encontra diversão e questionamento em uma única sessão e uma cena final de estraçalhar os nervos de tão pessimista.
Como ocorre sempre nos primeiros dias do ano, a lista de estreias já corre entre os cinéfilos e muitos já estão ansiosos por produções há muito anunciadas e que, sem dúvida, irão lotas as salas de exibição. Inclusive por muita gente que entra de gaiato para ver “o filme que todo mundo está comentando”, mas que mal sabe a sinopse. Faz parte da vida de quem trabalha com cinema essas esperas. Mas são as surpresas, as cenas inesperadas e o pouco alarde sobre algo realmente inspirador que costumam marcar de verdade. Lukas foi um deles, sem dúvida.