É interessante notar que, passados três anos desde que Edward Snowden vazou documentos confidenciais sobre as atividades ilegais da NSA, agência de segurança nacional americana, quase nada aconteceu. O estrago que ele causou ficou mais no plano do susto do que em resultados concretos. Com exceção talvez de crescimento – que já existia – no descrédito do governo americano em escala global, pouca coisa mudou de fato e, curiosamente, conforme demonstrado pelo jornalista John Oliver no seu programa Last Week Tonight da HBO, apesar dos seus esforços e para sua total miséria, Snowden é praticamente desconhecido pelo público – quando não confundido com Julian Assange, fundador do WikiLeaks e reconhecido babaca em escala internacional.
Pois bem, o mundo real, como todos sabemos, pode ser bastante frustrante. Isso não impede que determinados artistas se inspirem, ao menos parcialmente, em casos como esse para construir peças relativamente interessantes. É o caso de Oliver Stone, com seu Snowden – Herói ou Traidor (Snowden).
No mínimo curioso que logo Stone, um cineasta já há algum tempo sendo bastante questionado, escolher logo a história de um sujeito completamente desacreditado para realizar sua nova peça. O filme se concentra – de maneira não linear – no período entre a juventude do protagonista no exército, com toda sua caminhada até trabalhar como especialista de defesa do ciberespaço para as agências de segurança nacional americanas – NSA, CIA… o homem esteve em todo canto – até a sua fatídica decisão por expor as atitudes do governo americano, usando essas agências para vigiar os cidadãos americanos e até mesmo do resto do mundo, utilizando ferramentas de comunicação cotidianas, como celulares e laptops.
O elenco do filme é bastante interessante, sendo um de seus pontos altos. Joseph Gordon-Levitt realmente encarna Snowden, que possui trejeitos bastante conhecidos através de suas inúmeras entrevistas, em todas as fases expostas no filme, desde sua juventude mais idealista até os períodos de extrema tensão com a realidade batendo à sua porta. Sua namorada Lindsay Mills, interpretada por uma surpreendente Shailene Woodley, egressa do seu insosso papel protagonista na série Divergente, consegue manter o interesse do público na esfera pessoal do personagem principal.
Os coadjuvantes também colaboram, com destaque para a equipe de jornalistas do The Guardian, que inicialmente expôs as informações de Snowden na vida real, composta por Melissa Leo, o experiente Tom Wilkison e o ótimo Zachary Quinto. Outros papéis menores incluem desde nomes interessantes e relevantes, como Rhys Ifans e Timothy Oliphant, até a presença inútil, mas curiosa, de Nicolas Cage – não surtando em cena pela primeira vez desde os anos 90.
Narrativamente, o roteiro – de Kieran Fitzgerald e do próprio Stone – é redondo, mas relativamente covarde. Edward Snowden – o real – e suas ações são a epítome de um tema amplamente debatido na história recente, desde escritores de ficção, como Aldous Huxley e George Orwell, passando por filósofos como Foucault e Deleuze, sociólogos como Zygmunt Bauman e até mesmo a cultura pop, como a recente Guerra Civil da Marvel: o embate Segurança x Liberdade.
Esse tema não é apenas relevante, é um dos aspectos determinantes da vida cotidiana na era da informação, e Snowden, por mais que suas ações tenham tido poucas consequências efetivas, pôs sobre a mesa as cartas que nós sempre soubemos que existiam, mas que ninguém nunca havia provado. A distopia tão prevista por muitas obras de ficção científica já havia chegado e nós estávamos vivendo nela, mas – conscientemente ou não – ignorávamos o fato. Snowden excluiu essa possibilidade da mesa, e é exatamente isso que torna suas ações tão interessantes.
Mas Stone, não sabemos se pensando em um Oscar ou não, decidiu ignorar solenemente esse aspecto de tais ações, pegando esse personagem real tão complexo e tornando-o um herói de ficção bidimensional em um thriller político genérico. Como em todas as irritantes e idênticas cinebiografias recentes, feita para obter a grife da Academia, tudo gira em torno do herói solitário em uma narrativa extremamente previsível – ele apresenta seus ideais, enfrenta pessoas à sua volta que parecem se interessar por ele, mas se revelam vilões, conhece o amor da sua vida e luta para preservá-lo das consequências dos seus atos heroicos. Se você assistiu A Rede Social, Jobs, O Quinto Poder, só para permanecer próximo a temas análogos ao de Snowden, já sabe rigorosamente como o filme começa e como ele vai terminar – e não é por ser baseado em fatos.
Para talvez tentar compensar esse aspecto narrativo genérico, Stone investe na sua estética particular tão conhecida. É claro que, desde a abominação conhecida como Alexandre, sempre que pensamos em Stone exercendo sua “estética” particular a única coisa que nos ocorre são calafrios, tremores involuntários e algumas lágrimas. Mas, surpreendentemente, dessa vez o vemos em uma versão “econômica” – seus maneirismos ainda estão lá e não contribuem em nada para a trama, mas ao menos não a prejudicam e também não ofendem o público. Mesmo a trilha sonora, que, próxima do último ato do filme, começa a assumir seus contornos “heroicos”, não chega a irritar, justamente por se concentrar mais próxima do término da coisa toda, onde já não se espera muito mais. Porque é realmente risível ouvir aqueles tons tão épicos aplicados a figura raquítica do nerd Snowden. No caso de outros cineastas, até seria de se pegar no pé, mas sendo Stone, vamos ser gratos por esses efeitos estéticos serem apenas inúteis.
A nota de curiosidade fica pela participação do próprio Snowden no filme – o que significa que, no mínimo, ele concordou com o que viu ali, o que pode ser interpretado de muitas formas. Para alguém que sacrificou toda sua vida em prol de um ato de defesa das liberdades individuais dos cidadãos dos EUA e do mundo, um filme que é basicamente um monumento à sua vaidade e seus sacrifícios particulares – e não a sua causa em si – não deveria ser o bastante. Porém, novamente, não dá para saber até onde ele teve poder de decisão sobre qualquer coisa na obra de Stone, para quem nós sabemos que não existe vaidade o bastante no universo. Só o que sabemos é que, ao término da sessão, fica a sensação de que essa pessoa perdeu mais uma enorme oportunidade de nos fazer entender porque ele fez o que ele fez e a importância disso, em troca de uma obra que é uma egotrip em torno da sua figura, realizada por um ególatra profissional.
Em linhas gerais, Snowden – Herói ou Traidor pode até ser um filme divertido. Na verdade, dado o fato – como dissemos no início da crítica – que praticamente todos já esqueceram quem ele é e o que fez, ao ponto de ser confundido com alguém abjeto como Julian Assange, é um fato consumado que o filme tem potencial para ser um sucesso comercial. Afinal, ele tem todos os elementos de um bom thriller que atrai as pessoas para o cinema: aventura, mistério, romance e até alguma nudez, veja só, mas quem entende o tamanho da importância do que Snowden fez dificilmente ficará satisfeito pela maneira como esses fatos foram trabalhados aqui – que o tornam basicamente um blockbuster de fim de semana, feito para encher os cofres de produtores e cineastas mais uma vez.
Ironia das ironias: mais uma vez, Snowden foi cooptado pelo sistema.