Segundo a tradição budista, a flor de lótus é não somente uma das mais belas flores que existem, mas também uma metáfora para a condição humana e sua existência nesse mundo. Isso porque essa flor, rara e de beleza única, nasce no mais improvável dos ambientes: pântanos e charcos – locais de fundo lodoso, conhecidos pela “sujeira” e pelas impurezas que a água estagnada acarreta. Entretanto, a lótus ergue-se não apenas pura e intocada pela sujeira desse ambiente ao seu redor, mas utilizando-se dos nutrientes desse ambiente para persistir, gerando sementes que podem perdurar por séculos. Phiona Mutesi, jogadora ugandense de xadrez e inspiração para o filme Rainha de Katwe (Queen of Katwe), é uma dessas flores.
Phiona Mutesi, belamente interpretada pela surpresa Madina Nalwanga, nasceu no bairro de Katwe, o maior e mais pobre na periferia da capital ugandense Kampala. Sua história sem o esporte seria apenas mais uma na dura e triste realidade de seu continente – quase um clichê. Como milhares de pessoas em seu país, que é um dos mais pobres e com um dos menores IDH’s do mundo, Phiona parecia fadada a uma vida de completa austeridade e sem qualquer perspectiva.
Seu pai, também como milhares de outras pessoas no seu país e na África como um todo, morreu devido a complicações geradas pelo vírus HIV, infelizmente ainda uma epidemia que gera milhões de mortes todos os anos no continente, deliberadamente esquecido pela comunidade global. Totalmente analfabeta, sobrevivia ajudando a mãe a vender milho nas ruas da capital, cuja renda era destinada a pagar o aluguel de um barraco minúsculo em Katwe, único local acessível à renda de sua mãe, Nakku Harriet (Lupita Nyong’o). Vivendo com mais duas irmãs e um irmão, Phiona estava resignada a sua prisão sem muros para o resto da vida.
Sua vida muda quando ela decide seguir o seu irmão, que parecia abandonar a venda nas ruas para se associar com pessoas erradas, o que o levaria rapidamente a uma vida de crime, também uma realidade local bastante comum. Entretanto, ela descobre que seu irmão, na verdade, frequenta uma missão religiosa, que usa o esporte para oferecer alguma perspectiva para os jovens da periferia de Kampala.
A missão, dirigida por Robert Katende (David Oyelowo), usa xadrez como uma surpreendente escolha de esporte para atrair esses jovens. O jogo vira uma pequena febre entre as crianças da região, com Robert incentivando a competitividade interna para manter o interesse, ao mesmo tempo em que usa a pedagogia para educar os jovens. O ponto de virada é quando, progressivamente, Phiona descobre que melhora gradativamente. Em pouco tempo, se torna a melhor da turma. Katende, seu treinador, decide estimular ao máximo sua aluna, somente para vê-la tornar-se um fenômeno.
O filme, em si, provoca algumas ressalvas à primeira vista. Qualquer história de superação dramática já é, por si só, um convite a pieguice ou a egolatria. Quando vemos o logo da Disney próximo ao título, a sensação de total enfado diante da possibilidade de sermos forçados – a todo custo – a derramarmos uma lágrima diante da desgraça alheia e sua catarse (afinal, estamos falando de Disney) subsequente toma conta imediatamente do amigo leitor, que não suporta mais esse tipo de narrativa.
Mas o primeiro sinal de que devemos dar uma chance ao filme é o fato de que ele não é uma adaptação direta da vida de Phiona, mas sim baseado no livro The Queen of Katwe: A Story of Life, Chess, and One Extraordinary Girl’s Dream of Becoming a Grandmaster, escrito por Tim Crothers, conhecido por ser um rigoroso jornalista esportivo, e publicado pela ESPN, um dos maiores canais de esporte do mundo, acostumado a fazer bons documentários sobre a vida e feitos de atletas.
No entanto, o filme surpreende. Se não no sentido artístico, onde é bem ordinário, no sentido narrativo, nos apresentando, de fato, uma história de superação, mas com tal sobriedade que nos permite celebrar sem refreios o sucesso da improvável heroína na vida real. A diretora Mira Nair, que chegou a ser nomeada ao Globo de Ouro no início da sua carreira, não exige demais do espectador em nenhum aspecto técnico do filme, mas todos os personagens são construídos de maneira absolutamente crível, com todas as suas nuances, qualidades e defeitos. É essa a profundidade que permite ao grande trunfo do filme desfilar o seu talento: o elenco.
A essa altura do campeonato, falar sobre o talento de Lupita Nyong’o beira o desnecessário, e aqui ela não foge à regra. É muito difícil encarnar uma pessoa real na sua totalidade, pois seres humanos não obedecem a roteiros; são erráticos, passionais, fazem escolhas confusas que normalmente atravancam o desenvolvimento da sua própria história. Portanto, é muito difícil criar uma narrativa fluida com alguém assim. Mas é justamente nesse aspecto em que a Harriet de Nyong’o é mais cativante – ela erra constantemente, se vê desafiada pela sua própria ignorância em relação ao mundo e pelo seu desespero de saber que sua filha está destinada a muito mais do que ela já teve, mas somente se ela permitir. Harriet, se o amigo leitor permitir, pode até mesmo servir como um espelho para nós mesmos, pois quantas vezes nas nossas vidas nós não nos vemos obrigados a tomar decisões capitais sem ter total ciência do que suas consequências significam, para nós mesmos e para aqueles que amamos? Conforme Phiona evolui em ritmo acelerado no seu esporte, Harriet se vê obrigada a tomar esse tipo de decisão e a a atriz consegue representar isso com dramaticidade perfeita.
Já o personagem Robert Katende, se realmente tiver feito metade do que mostra o filme, é um herói na acepção mais pura da palavra. Ele teve a sua própria história de superação em uma vida tão ou mais rigorosa que a de Phiona, usando todo o aprendizado da sua dura vida para permitir que jovens como ele tenham mais perspectiva do que ele teve. O sujeito é de uma abnegação que só se compara à sua humildade, principalmente diante do fato de ser rapidamente sobrepujado em habilidade pela sua aluna. Onde muitos sentiriam inveja, Katende só tem o desejo de ver seus pupilos chegarem mais longe. David Oyelowo encarna o personagem com tamanha sutileza que, ele sim, é capaz de arrancar algumas lágrimas genuínas, através do seu hercúleo esforço diante de situações que muitos chamariam de “impossível”.
Mas a maior surpresa é realmente Madina Nalwanga. Sua interpretação de Phiona Mutesi é soberba. Dramática quando tem que ser, cômica quando precisa, espontânea quando é necessário. A cada momento de dificuldade, a cada momento de provação, a cada momento de conquista, Mutesi nos parece realmente viva na pele de Nalwanga e, diante do que já mencionamos do elenco, não é pouco se destacar diante dele. No entanto, sua simbiose com a personagem não vem somente do seu papel, mas sim – curiosamente – da sua própria vida particular, com tantas coincidências em relação a Mutesi que suas vidas são quase análogas. A atriz mirim também nasceu em um bairro pobre do país e também lutava para ajudar a sustentar sua família. Ela, em verdade, nunca sequer havia visto um filme antes de participar de um. O que aumenta ainda mais os créditos de Nalwanga, que entrega uma interpretação orgânica, natural, de alguém que realmente entende o que é aquela vida na pele, mas sem fazer das câmeras um prisma que distorce a sua realidade para pior – ou mesmo para melhor.
Seria realmente uma coincidência notável – e de certa forma infeliz – se não tivéssemos que voltar ao ponto explicitado alguns parágrafos acima: esta é uma realidade comum a milhões de jovens no continente. Mutesi e Nalwanga não são – apesar de tudo – exceções à regra; elas são a regra, e o seu sucesso individual não pode esconder isso. O esporte e a arte lhes deram propósito e sucesso, mas quantas pessoas realmente encontram essa poderosa combinação – talento e oportunidade – para fugir ao imundo mundo à sua volta? Qualquer pessoa que não seja um completo esquizofrênico e/ou delirante sabe que a vida de bilhões simplesmente não funciona assim. Justamente, outro dos méritos do filme está exatamente aqui – a representação da realidade dessas pessoas como ela é. De maneira crua, mas não cruel.
Incidentalmente, apesar da leve espinafrada na Disney lá em cima, alguns méritos precisam ser dados a empresa. Rainha de Katwe é um dos filmes mais corajosos do ano. Talvez não tanto pelo que apresenta, mas pela sua execução. Ao que possa falhar a memória desse estúpido colunista, é a primeira vez que um filme de um dos maiores estúdios hollywoodianos realizou um filme em território africano, com um elenco todo negro, com uma atriz mirim protagonista sem experiência prévia e – talvez o mais surpreendente de tudo – sem a condescendência cretina de colocar “animais nativos” em cena. O filme leva aquela sociedade e pessoas nela muito a sério, apresentando-os corajosamente para o público estrangeiro como eles realmente são. Embora não entre no aspecto político, com um presidente-ditador que está no poder há 30 anos, temos aqui um retrato palatável de uma realidade difícil – um equilíbrio muito complicado de se encontrar, mas feito com sucesso pela diretora e seu elenco.
A reflexão que o filme deixa é muito simples, e feita muitas vezes por qualquer pessoa que não é completamente alienada as coisas à sua volta: se o mundo fosse um lugar ligeiramente mais justo, em termos econômicos, sociais e políticos, quantas lótus como Nalwanga e Mutesi não poderiam desabrochar? Quantas pessoas não poderiam desenvolver seu talento, se este não fosse assassinado brutalmente e em ritmo cotidiano pela dura realidade da maior parte das sociedades ao redor do mundo – quantas flores não poderiam desabrochar se nutríssemos mais do que sujamos?
O que você prefere: uma flor solitária em meio ao lodo, ou um jardim em plena primavera? Eu, Nalwanga e Mutesi sabemos a nossa resposta.