Apesar de ser um exercício fascinante, Quase Memória é insastifatório
O moçambicano Ruy Guerra é uma das pessoas mais importantes da cultura brasileira. Além de ser um dos diretores mais interessantes do Cinema Novo por sempre acrescentar a seus filmes uma linguagem mais rebuscada, ele escreveu letras com nomes importantes da musica como Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo e Francis Hime. Depois de mais de dez anos desde o seu ultimo longa, O Veneno da Madrugada, o cineasta lança Quase Memória, evidenciando mais uma vez seu domínio na linguagem e sua imensa criatividade. Infelizmente, faltou algo para complementar essa experiência.
Baseado no bestseller de Carlos Heitor Cony, o longa mostra o velho Carlos (Tony Ramos), que um dia é visitado pelo sua versão mais nova (Charles Fricks) e ambos começam a se lembrar da infância, envolvendo a figura excêntrica do pai, um respeitado jornalista (João Miguel, de Estômago, comentado neste vídeo), e da doce mãe (Mariana Ximenes). Ambos começam a questionar sobre suas lembranças e se um dia elas desaparecerão.
A sinopse se mostra um teatro do absurdo, mas isso é completamente coerente a estética dada por Ruy Guerra. As falas, quase todas em forma de monólogos, soam teatrais, assim como as atuações e os cenários. Sempre com luzes demarcadas e diegéticas, com um forte uso de cores quentes e ângulos inusitados, Quase Memória se mostra um exercício de linguagem dos mais interessantes. Mérito da direção de Guerra, que, mesmo em um filme barroco, nunca exagera na dose, mantendo cuidado e disciplina. É um longa que denota essa proposta desde o começo, quando um sapo – dublado por Guerra – declama um longo monólogo em um pântano falso, deixando clara a intenção.
Além da estética, outro fator que chama a atenção do longa é a qualidade das suas atuações. No caso, é um trabalho muito difícil do elenco, já que é uma proposta teatral. Fora do tom adequado, poderia cair na caricatura, mas vemos que eles se seguram em seus papéis. João Miguel, que mostra vários trejeitos em seu personagem, cria um personagem caloroso e divertido que não incomoda com o excesso de tiques, caras e bocas.
O restante do elenco segue essa orientação e se sai bem. As atuações mais contidas ficam por conta de Tony Ramos e Charles Fricks, que, como narradores dessas memórias, precisam de um composição específica. Enquanto Fricks demonstra um Carlos cheio de ideais e sonhos, o de Ramos é um ser amargurado e, aos poucos, destruído pela idade. Aliás, deve se salientar o trabalho de Ramos. Uma interpretação muito rica, tanto corporal quanto na cadência da fala e um jeito saudoso e, ao mesmo tempo, raivoso, ao falar da sua vida. Isso além de sua forte presença de tela, “capturando” a câmera toda vez que aparece em cena.
Quando acaba o conteúdo
Todo o assunto abordado do longa é sobre a questão da memória e de como será quando esquecermos de nossas lembranças por conta da idade. Quando se esclarece o tema, é uma pena que o longa pareça não saber para onde ir e ter esgotado seu conteúdo. Mesmo sendo um filme curto (95 minutos), parece que, tanto Guerra quanto os seus roteiristas, em uma altura do campeonato, olharam e disseram: “Então, o que fazemos? Vamos terminar aqui, já que não temos mais pra onde correr”. A percepção é que tudo se esvaziou e o longa simplesmente acaba. Isso acaba comprometendo o que vinha como uma ótima experiência, infelizmente.
Apesar desse problema de conclusão, Quase Memória se mostra um filme muito interessante, principalmente na questão estética, onde é ousado e diferente. Na mão de um diretor menor, seria mais um espetáculo onde o barroquismo se tornaria insuportável. Comandado por um cineasta com o talento e a experiência de Ruy Guerra, sai algo muito mais interessante.