Há filmes que constituem um caso especial. São obras que, além de terem um bom ponto de partida, começam de maneira efetiva e só melhoram com o desenrolar da história. Além disso, apresentam personagens interessantes e multifacetados. Ao longo da projeção, a única preocupação que passa pela cabeça do espectador é se o final do filme fará jus ao que está sendo visto. No entanto, o terceiro e derradeiro ato chega e o maior temor se transforma em realidade. Os minutos finais são tão ruins e equivocados que o espectador sai da sala com um gosto amargo na boca e esquece da qualidade dos dois primeiros atos. Infelizmente, Passageiros (Passengers) é um desses filmes.
A trama se passa em um futuro longínquo na história da humanidade. Numa época em que a colonização de outros planetas se tornou algo viável, naves repletas de seres humanos hibernados saem da Terra com destino a outros locais do sistema solar. No entanto, numa dessas viagens, devido a uma falha operacional na nave que o transporta, o mecânico Jim Preston (Chris Pratt) acorda durante o trajeto e descobre que ainda restam 90 anos até chegar ao destino final. Completamente sozinho e tendo esgotado todas as possibilidades de voltar à hibernação, ele opta por acordar outra viajante, Aurora Lane (Jennifer Lawrence), uma escritora que tinha chamado sua atenção. Sozinhos no espaço e apaixonados um pelo outro, eles vivem uma vida idílica até que alguns segredos começam a vir à tona.
Escrito por Jon Spaihts e dirigido por Morten Tyldum (de O Jogo da Imitação), Passageiros envolve o espectador logo nos minutos iniciais. Com um ritmo mais lento e momentos contemplativos, o blockbuster impressiona pela coragem de investir numa abordagem mais vagarosa, dando tempo para que o protagonista e a solidão enfrentada por ele sejam devidamente apresentados e aprofundados. Quando Aurora acorda, o filme se mostra igualmente preocupado com a construção da personagem, e, embora ela tenha menos tempo em tela, a personalidade dela é bem desenvolvida e os conflitos internos que a movem ficam claros para o espectador desde o início. Ademais, o romance entre os dois nunca soa forçado ou inverossímil, pois, antes de se relacionarem, eles tentam entender o que está acontecendo e só depois de perceberem o quão solitários e desesperados estão é que os dois acabam por envolver-se.
Além disso, o filme acha tempo para apresentar algumas boas ideias, como a de colocar um robô barman (Michael Sheen), que serve como confidente e ouvido amigo do protagonista, e simbolismos ricos, como a árvore plantada por Preston, que é uma clara referência à arvore da vida e à semelhança entre a situação dos personagens e a história de Adão e Eva. Tecnicamente competente, Passageiros também brinda o espectador com algumas imagens belíssimas do espaço sideral e do interior da nave que, ressaltadas pelo uso correto do 3D (Tyldum e Rodrigo Prieto, o diretor de fotografia, empregam o recurso para explorar profundidade de campo e não para atirar coisas na direção do espectador), refletem a solidão e o isolamento de Preston e Lane.
(Para fazer justiça ao filme e manter a unidade do texto, optamos por um trecho com spoilers, tamanha a distância qualitativa entre os dois primeiros terços e sua conclusão. Caso não queira entrar em contato com detalhes reveladores da trama, pule os três próximos parágrafos e vá direto ao último)
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SPOILERS de Passageiros a seguir!
No entanto, é mesmo a coragem que o filme tem de mostrar o seu protagonista realizando uma ação moralmente ambígua que transforma os dois primeiros atos de Passageiros em uma experiência tão prazerosa. Jon Spaihts poderia facilmente ter feito com que Aurora também acordasse em razão de uma falha na nave e, assim, evitado uma problematização da moral de Preston, mas, ao mostrá-lo desesperado, solitário e acordando uma outra pessoa para ter alguém com quem interagir, mesmo sabendo que isso significaria o fim dos sonhos dessa pessoa, o roteirista não só transformou o personagem em um ser mais complexo, como flertou com a possibilidade de que o público passasse a odiar o protagonista, o que se revela uma decisão ousada do roteirista. Esse tipo de coragem não é comum em filmes hollywoodianos.
Todavia, a trama se encaminha para o final, e, em um ato de sadomasoquismo, o filme coloca tudo a perder. Covardes e assustadoramente ordinárias, as escolhas desastrosas feitas pelos realizadores nos minutos finais impressionam, fazendo o público sair da sala de cinema disposto a esquecer todas as coisas boas presenciadas momentos antes. Escorregando ao investir em um deus ex machina (aqueles convenientes atalhos de roteiro, neste caso, o personagem interpretado por Laurence Fishburne), muito mal trabalhado e abandonado instantes depois, ressaltando ainda mais o oportunismo do recurso, o terceiro ato também desperdiça boa parte do seu tempo numa sequência de ação longa, visualmente pobre e nada empolgante.
Porém, é na dinâmica da relação entre Preston e Lane nos instantes finais que Passageiros atinge o fundo do poço. Todo o cuidado visto na construção dos dois personagens principais e da relação entre eles é abandonado, dando lugar a todos os tipos de soluções fáceis e esquemáticas. Ações aparentemente imperdoáveis de um personagem são perdoadas pelo outro num piscar de olhos, fatalidades que deveriam ser impactantes se mostram totalmente enfadonhas devido à previsibilidade com a qual são construídas e o arco dramático do protagonista (depois de egoisticamente acordar Lane, faria sentido que Preston terminasse o filme se entregando a um ato altruísta) é completamente sacrificado em prol de um “final feliz” infantil e superficial.
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Com um terceiro ato tão desastroso como esse, é impossível deixar de sentir um gosto ruim na boca quando as luzes se acendem. Ainda mais quando essas escolhas são acentuadas pela coragem e qualidade constatados nos dois primeiros atos do filme. Se o desenrolar da história tivesse sido ordinário, o final não chamaria tanta atenção. Mas, ao elevar o nível apresentando boas ideias e um desenvolvimento rico, a linha descendente do terceiro ato salta aos olhos e deixa o espectador irritado por ter visto uma obra desperdiçar todo o seu potencial em uma série de escolhas equivocadas e covardes. Afinal, quanto mais alto o voo, maior é a queda. E Passageiros voa alto, mas cai e coloca tudo a perder.