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Para Minha Amada Morta – Vingança no vazio!

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Neil Gaiman, ao descrever sua personagem Desespero, diz que “em seu reino estão espalhadas milhares de pequenas janelas, penduradas no vazio. Ao olhar para elas, você sente seu anzol. Desespero diz pouco, e é paciente. ”  Bergman, diretor da Trilogia do Silêncio, dizia que “existe apenas uma maneira de evitar um estado de desespero e colapso. Ficar em silêncio. E no silêncio encontrar a clareza e os recursos que ainda me são disponíveis”. Acreditamos, ingenuamente, que o silêncio e os espaços vazios são a morte de um diálogo ou de uma ação. Ledo engano. No silêncio e no vazio, muitas vezes encontramos a motivação necessária para fazer aquilo que normalmente não conseguiríamos. Ideias que crescem aos poucos. Ações que amadurecem conforme as motivações que as alimentam.

Em Para Minha Amada Morta, o silêncio e a ausência da ação criam os espaços vazios onde as motivações da trama se desenvolvem, e a motivação do protagonista Fernando não poderia ser mais simples e objetiva: vingança. Pois bem, diz o dito popular que a vingança é um prato que se come cru. O diretor Aly Muritiba, que também assina o roteiro, nos apresenta uma visão distinta.

Para Minha Amada Morta

Fernando, ao perder sua mulher, torna-se um homem quieto e introspectivo. Como muitos que passam pelo processo de luto, não consegue se desapegar de tudo que o lembra de sua esposa – roupas, sapatos e vídeos de épocas felizes. Em um desses vídeos, Fernando descobre que sua esposa lhe traía. A partir daí, vai atrás do amante de sua mulher para realizar sua vingança. Então, passa a conhecer esse homem, Salvador, sua esposa Raquel e suas filhas, enquanto decide o que fazer.

Descrito dessa forma, parece uma trama óbvia, rasa. Mas esse talvez seja o aspecto que mais chama a atenção no filme – a trama é, de fato, muito simples. Tudo se resolve muito rápido – a descoberta da traição, a maneira como Fernando encontra Salvador, a conveniência que permite o proitagonista observar e se aproximar da família de seu alvo. O que o diretor nos deixa claro é que isso não é importante. Essas questões são apenas a moldura que encerra o quadro dentro de si, e o quadro em questão, seguindo essa analogia, é uma tela em branco.

Para Minha Amada Morta

Por estranho que possa parecer, nada acontece no filme. Não existe ação propriamente dita, os diálogos são curtos, pontuais e – muitas vezes – beirando o monossilábico. O curioso é que, como o filme é construído em cima desse aspecto, nós temos uma tensão permanente e perene criada pelo que não é dito e pelo que não é feito. Inúmeros olhares cruzados entre Fernando e Salvador; a tensão sexual que nunca se cumpre entre Fernando e a esposa e a filha mais velha de Salvador; as câmeras fechadas em objetos que poderiam ser usados como arma e momentos em que a violência poderia explodir, mas não explode. A tensão que acontece no vazio das imagens e no silêncio dos protagonistas é mais opressora do que qualquer coisa dita ou feita de fato. Citando novamente Neil Gaiman, o desespero diz pouco e é paciente.

Para Minha Amada Morta

É de se imaginar que uma obra que se fundamente e dependa desse aspecto metafórico e conceitual tenha uma boa execução. É aqui que o filme peca em partes. Para sustentar mais de duas horas de um filme sem diálogos e sem ação, é necessária precisão na filmagem e um senhor trabalho por parte dos atores. Infelizmente não é o que acontece. Todos os protagonistas, principalmente Fernando Alves Pinto, que já havia feito um trabalho muito melhor em Dois Coelhos, não conseguem dar sustentação à densidade que seus personagens e as situações exigem. Principalmente nos poucos diálogos do filme, percebe-se a dificuldade dos atores de expressar sem palavras aquilo que seus personagens querem dizer, mas talvez isso não deva ser colocado somente na conta dos intérpretes, pois na construção desses espaços vazios metafóricos, Muritiba muitas vezes perde a mão. Algumas cenas são simplesmente arrastadas e alguns momentos de silêncio são desnecessários. Talvez uma duração um pouco mais compacta, com um roteiro mais enxuto, poderiam ter corrigido esses problemas, pois o filme às vezes perde muito tempo reforçando as mesmas ideias. Por vezes, o cineasta confunde construir a tensão dentro do nada e não fazer nada de fato.

Para Minha Amada Morta

No geral, o saldo é positivo. É um filme que trabalha um tema clichê, vingança, de uma perspectiva toda nova. Usar o silêncio e os espaços vazios para criar resoluções de conflitos é ousado, uma marca de grandes diretores. Embora ainda falte muito para Muritiba se firmar como diretor, percebe-se um esforço da parte dele de fugir de lugares comuns. Ter como primeiro longa um investimento em uma ousadia conceitual pode ser considerado um bom primeiro passo.

E o que aprendemos em Para Minha Amada Morta? No dito popular, a vingança é um prato que se come cru. Para Aly Muritiba, é um prato que se come vazio.

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