Suspense nacional O Segredo de Davi surpreende com serial killer que publica vídeos de seus crimes
No submundo da deep web, o arcabouço sombrio do ensolarado universo da Wikipedia e das falsas alegrias das redes sociais, vídeos horrendos são a manifestação diabólica das mais insuspeitas pessoas a nossa volta. Nesse território sem lei, os snuff-videos (filmes com assassinatos reais) são ferramentas de diversão e expressão para mentes perturbadas. Felizmente, o protagonista de O Segredo de Davi pertence apenas ao mundo da fantasia. Embora neste assunto a realidade consiga ser muito pior que a ficção.
O cinema brasileiro tem se esforçado em sair do estereótipo das comédias rasas ou dos dramas sociais. Nos últimos anos, produções audaciosas de terror e suspense tem chamado a atenção (para o bem e para o mal) em festivais e também da crítica especializada, como Isolados (2014) e O Rastro (2017). E este parece que será o destino de O Segredo de Davi, que marca a estreia na direção de Diego Freitas.
Na trama, Davi (Nicolas Prattes) é um tímido estudante de cinema que passa a maior parte do tempo sozinho filmando pessoas que, de alguma forma, lhe chamam a atenção. Embora solitário, Davi não é isolado, tendo alguns amigos e participando de atividades sociais. Mas o jovem esconde um passado obscuro e começa a matar pessoas por razões que, tanto ele, quanto o público, vão descobrindo aos poucos. Davi, também é um hacker em formação, e só se vê plenamente satisfeito após publicar as filmagens de seus assassinatos na internet.
Freitas não é necessariamente inovador na construção estética. A paleta de cores sombria e a atmosfera excessivamente dark oferecem uma fotografia internacional para o público. Isso não chega a ser um problema, pois a ambientação se encaixa muito bem na personalidade oculta do personagem, que enxerga o mundo sempre envolto em sombras. A escolha de um elenco exageradamente dentro do padrão de beleza europeu é que gera um distanciamento, confirmando a intenção do diretor de fazer um filme estrangeiro com assinatura nacional.
Elenco de primeira
Nicolas Prattes está caracterizado como um personagem que se divide entre o anjo e o demônio, um recurso um tanto óbvio que poderia caricaturar o filme se não fosse o exímio talento que o jovem ator demonstra em cena. Prattes transita com facilidade da suposta fragilidade do Davi público para a monstruosidade do Davi das sombras, sem que esse, no entanto, perca as características básicas do primeiro. Davi não é um psicopata, indiferente aos sentimentos, e o protagonista consegue trabalhar muito bem essa dualidade com os olhares penetrantes, que já se tornaram sua marca de atuação até mesmo nos folhetins televisivos. Em tempo, o ator se mostra muito mais a vontade como homicida do que como ‘cidadão de bem’.
O filme exige muito do seu elenco. O ponto alto é a magistral Neusa Maria Faro, na pele de uma senhora macabra que conduz a plateia para o ambiente de terror sobrenatural da produção. Destaque também para Eucir de Souza, como um motorista de táxi que protagoniza uma das cenas mais fortes do filme, e o eloquente João Cortês, que faz o contraponto cômico na pele do amigo de Davi.
O Segredo de Davi também toca em assuntos espinhosos como homossexualidade e cristianismo. e também voyeurismo, bullying e críticas à tecnologia, usando e abusando dos contrastes entre o velho e o moderno para falar do isolamento no mundo contemporâneo. O problema é que, com tantos elementos, se exige muito mais do roteiro do que ele de fato pode oferecer.
A narrativa acaba não sendo fluida e peca pela artificialidade em muitas situações. Sobretudo no primeiro ato, o texto se mostra mais arrastado, apostando em uma narração em primeira pessoa que busca jogar o espectador para dentro do olhar do protagonista, recurso que é praticamente ignorado nos dois atos seguintes. Os diálogos parecem ter sido escritos por um autor de novelas, sendo simplistas demais para uma obra com tão forte aspecto psicológico. Felizmente, graças ao talento dos atores, esse problema acaba sendo sublevado.
O Segredo de Davi têm simbolismos e questões incômodas em tempos do politicamente correto, mas também não é reservado apenas aos iniciados. É uma produção comercial que tem o mérito de arriscar em experiências pouco comuns no cinema brasileiro. Seria muito bom que seu sucesso abrisse as portas para novas produções que explorem o intimismo, algo que nossos irmãos argentinos e chilenos já aprenderam há muito tempo. Na história, Davi deixa seu Golias interno vencer a batalha. Na realidade, espera-se que muitos outros Davis venham para derrotar os muitos Golias que surgirão para salvar o cinema brasileiro.