As minorias protagonistas e O Rei do Show
Lançar um espetáculo sobre uma figura histórica que ludibriava as pessoas por dinheiro, principalmente no período natalino, não parece ser a melhor das decisões de um estúdio de cinema. No entanto, quando compreende-se a lição de O Rei do Show (The Greatest Showman), de Michael Gracey, percebemos que não trata-se exatamente de uma biografia, mas de um especial apelo ao respeito às diferenças sociais, utilizando do que há de melhor no gênero musical enquanto meio de atingir os nossos corações.
A mensagem do filme encanta-nos por estar centrada na ideia de aceitação do próximo enquanto ser humano, inclusive por si mesmo, ainda que a obra possua um claro aspecto cinebiográfico, dentro de uma atmosfera musical sob um formato teatral lúdico – a história tem como base a vida de Phineas T. Barnum (Hugh Jackman, recém saído do sucesso de Logan), reconhecido como o criador do show business e fundador do circo moderno.
Na obra, a trajetória de Barnum é colocada de maneira equivalente à sua respectiva figura real e histórica: através de uma narrativa de ascensão e queda consequentes, repleta de falcatruas do personagem, mas sempre redirecionada à motivação dramática voltada à mensagem anti-preconceito transmitida pelo filme.
Dentro de uma estrutura narrativa bem comum, de maneira inteligente Gracey utiliza de vários aspectos genéricos e conservadores (família “tradicional” e patriarcalismo histórico) como forma de dar destaque a questões sociais importantes à atualidade, como humanização e igualdade de direitos. E é exatamente por isso que temos o protagonismo de Barnum tornando-se um interesse secundário na história, pois a lição social dita pelo filme centraliza vários de seus principais momentos na figura dos chamados “freaks”.
Identificados, claramente, como pessoas que são colocadas à margem da sociedade devido à sua aparência física, um ponto alto do filme é dar destaque à vida dessas pessoas de maneira emocionante, sem colocá-las como alívios cômicos narrativos, inclusive com momentos nos quais elas se impõem diante da sociedade de forma militante. O filme aborda, assim, a luta contra a discriminação de pessoas que são consideradas “as estranhas” na sociedade e/ou fora dos parâmetros sociais identificados como “normais”.
Ademais, o melodrama de O Rei do Show também é voltado a inquietações sobre: miscigenação, racismo, desigualdade social e inclusão social, sempre indicando-nos a palavra “preconceito” nas entrelinhas de seu texto escrito, abordada muito intimamente. Um detalhe interessante é como que, mesmo sem se aprofundar em nenhuma dessas questões, o filme aborda cada um desses assuntos pontualmente sem deixar a narrativa cansativa, promovendo sua mensagem de maneira sucinta.
E nesse ponto, a obra mostra-se relevante a qualquer ser humano que já tenha sofrido qualquer tipo de preconceito e discriminação.
Um Espetáculo Lírico em busca da Ópera Utópica
A obra possui diversos momentos poéticos, tanto com relação às mensagens nas entrelinhas do roteiro quanto à sua direção de arte, fotografia e montagem fílmica, pelas quais destacam-se os instantes coreografados e cantados pelos artistas no que pode ser observado como um palco cinematográfico pela sua mise-en-scène.
Não há dúvida quanto ao valor da obra enquanto musical. A melodramaticidade nesses momentos nos transportam a uma perspectiva quase que completamente teatral, o que não descaracteriza a obra em nenhum momento – afinal, lembremos que o cinema de ficção também teve seu início através de pequenos palcos filmados. Nessa perspectiva, a cinematografia surge como um breve acabamento a esses instantes musicais, ainda que destaque-se a movimentação da câmera usada pelo diretor de maneira peculiar e cuidadosa, complementando minuciosamente a narrativa musical.
Nessa estética peculiar, o filme nos faz compreender porque uma câmera está para um cineasta assim como uma caneta está para um escritor. A “escrita cinematográfica” depende sempre da forma como a composição artística é enquadrada e explorada pelo uso da câmera, o que acaba sendo um detalhe muito interessante nessa obra.
O filme mostra-se orgânico também pela sua colorização, através de uma paleta diversificada com cores vivas e fortemente contrastadas – mais voltadas às cores quentes circenses –, que enaltecem sua visualidade lúdica e mágica nos momentos musicais. No entanto, há também instantes mais densos voltados ao drama emotivo dos diversos personagens, e ainda que essas cenas não excluam a vivacidade da paleta de cores, esta é retrabalhada através de uma iluminação mais enegrecida e/ou em contra-luz, suprimindo as cores primárias da obra fílmica, por assim dizer.
Ou seja, a iluminação e a colorização têm contribuição direta no equilíbrio narrativo entre as mensagens sociocríticas e o tema de espetáculo propostos pelo filme.
Mas nada surpreende mais do que o cuidadoso uso de elementos cênicos durante as criativas coreografias, em conjunto com a exploração da cenografia. É possível dar atenção à manipulação dos elementos do cenário pelos atores-dançarinos ou por efeitos visuais e especiais, pois ao mesmo tempo em que complementam os passos de dança, explorando os limites do ambiente fílmico, também contribuem à poética teatral transmitida ao espectador, ao enaltecer as letras musicais.
Já adentrando nos aspectos da trilha sonora, há temas mais direcionados ao gênero do pop, criando um contraste curioso à época na qual o filme encontra-se. No entanto, o mais peculiar aqui é o cuidado com os elementos e efeitos sonoros nas composições musicais, complementando a melodia e a voz dos atores, deixando tais momentos mais impactantes aos sentidos e permitindo, assim, uma poética mais instigante quanto à mensagem final.
Portanto, ainda que sua história aparente uma construção clichê, não há como duvidar que O Rei do Show é aquele clichê de reconstrução de personagem muito bem trabalhado e acabado, agradando tanto os olhos quanto os ouvidos, além de uma importante lição a ser deixada na época do Natal. Um belo blockbuster de fim de ano.