Bom entretenimento em O Passageiro
Na ultima década, duas mudanças repentinas na carreira de dois atores famosos chamaram muito a atenção. A primeira foi Matthew McConaughey, que foi de galã de comédia romântica à um grande ator, tendo inclusive ganho o Oscar em 2014 por Clube de Compras Dallas e esteve recentemente em Um Estado de Liberdade. A segunda e mais curiosa – além de um tanto bizarra – foi Liam Neeson, que estabeleceu sua carreira como ator dramático, decidir se tornar um herói de ação na meia idade, após o sucesso de Busca Implacável (leia a crítica do terceiro filme da franquia). Por mais que realmente soe estranho o fato de Neeson ter se tornado o novo Charles Bronson, o ator se mostrou eficiente nesses papéis e criou uma parceria com o diretor espanhol Jaume Collet-Serra. Dessa parceria veio Desconhecido, Sem Escalas, Noite Sem Fim e agora O Passageiro (The Commuter), que mostra que essa dupla sabe como fazer um entretenimento funcional.
O longa conta a história de Michael (Liam Neeson), um ex-policial que decidiu ganhar a vida como vendedor de seguros. Todo dia ele segue a mesma rotina: acorda, ajuda o filho com os livros para a faculdade, a esposa o deixa em uma estação de trem e sempre faz o mesmo percurso na ida e na volta do trabalho. Um dia, após ser despedido, Michael pega o seu trem para voltar pra casa e é abordado pela misteriosa Joanna (Vera Farmiga). A moça dá uma missão a ele: em um dos vagões, há uma pessoa que não faz parte dos usuários rotineiros e Michael deve localizá-la e colocar um GPS na mala desse individuo, antes que o trem chegue à ultima parada. Se conseguir, ganhará 100 mil dólares, o que o ajudará com as finanças pra casa. Conforme o tempo passa, Michael finalmente descobre que há algo a mais nessa “simples tarefa”.
Vamos começar pelo óbvio: o roteiro de O Passageiro é estúpido. Por mais que o mistério seja intrigante (isso se deve mais à direção do que ao roteiro), os detalhes entregam as incoerências da trama: Michael atira e luta mais de uma vez, mas ninguém questiona porque sempre volta machucado. Em alguns momentos, o plano de Joanna se mostra perfeito demais, para depois deixar buracos que não convencem. Os empregados do trem não servem para muita coisa e, quando agem, não há lógica em suas atitudes. Isso sem falar do clímax, que só não é mais inverossímil que o de Águas Rasas, o último filme do diretor, que parece gostar de argumentos interessantes presos em roteiros idiotas.
O texto também se perde na construção do protagonista. É amoroso com a família, é conhecido entre os outros passageiros rotineiros do trem e continua com a amizade com o pessoal do departamento, em especial com o seu ex-parceiro, o detetive Alex Murphy (Patrick Wilson). Mas isso se perde no começo do segundo ato, que mesmo com 60 anos e há tempos fora da policia, ele se mostra um herói eficiente. Sempre presta atenção nos detalhes, aguenta surras de pessoas bem mais novas que ele e consegue andar pelas partes de baixo do veiculo, sem o menor problema. Nem o motivo que o fez sair da vida de policial o roteiro oferece. Sendo escrito a seis mãos, é de espantar que ninguém percebeu esse “detalhes” importantes e isso é o que quase estraga o longa, salvo por outros fatores.
O primeiro é Liam Nesson. Ator de talento inquestionável, Neeson mostra que consegue criar personas diferentes de ação em cada filme. Michael não tem nada a ver com o agente de Sem Escalas, o caçador de A Perseguição, o botânico de Desconhecido ou mesmo Bryan Mills de Busca Implacável. Aceitarmos o protagonista como uma pessoa comum no começo do filme se deve à sua performance. Até quando Michael se torna o herói, o ator consegue criar algumas nuances, como o olhar constantemente assustado e a respiração ofegante. Sem falar que a questão moral que o longa traz também é mérito do ator. De resto, o elenco se mostra pontual, com destaque para Vera Farmiga, que consegue ser ameaçadora e misteriosa, mesmo que boa parte de sua participação venha por voz, e Patrick Wilson, que mostra que, mesmo limitado a um personagem rasteiro, tenta – ênfase no “tenta”- dar camadas ao seu personagem.
Criando suspense em um espaço fechado
Quanto ao trabalho de Jaume Collet-Serra, vemos um diretor que evoluiu quando se trata de criar tensão. O cineasta consegue mostrar em poucos minutos, e com vários cortes, como funciona a rotina de Michael e a sua relação com a família. Mas quando o suspense começa e o personagem tem que achar a pessoa, Collet-Serra mostra inteligência. Usa bem o espaço deixando claras a geografia e a dificuldade da missão de Neeson, principalmente quando há um travelling passando pelas janelas mostrando quantas pessoas há no trem. Além dessa questão do espaço, ele mostra que sabe criar o clima utilizando o tempo. Sem em Águas Rasas era criado a partir da maré subindo, em O Passageiro é pela passagem das estações, que marcam o tempo que Michael perde.
E mesmos com as imbecilidades do roteiro, a tensão funciona, construída pacientemente. Mesmo com sequências de luta cuspidas, elas funcionam pela verossimilhança da coreografia e por evitar a tendência atual de picotar as cenas. Em especial, há uma luta onde há um plano sequência, durando em torno de sete minutos, muito bem feita na questão da brutalidade, deixando a coreografia e o espaço claros para o espectador. Lembra um pouco o que Ryan Coogler fez em uma das lutas de Creed. Jaume Collet-Serra eleva o filme com a segurança demonstrada nestes momentos.
O Passageiro é um bom filme do Liam Nesson porradeiro que nos acostumamos a ver nos últimos anos. Só torçamos para que o próximo filme da dupla tenha um roteiro mais decente, sem parecer com os atuais do Van Damme.