Um grupo de crianças que nasceu com habilidades especiais é acolhido em uma mansão por uma sábia mentora, para se esconderem de vilões da mesma estirpe, mas que usam suas habilidades de maneira gananciosa e mortal. Essas crianças agora precisam lutar para sobreviver, e somente a união das suas habilidades e dos seus corações poderá vencer esses inimigos.
Não, amigo leitor, você não entrou em uma resenha tardia de X-Men. Essa é basicamente a sinopse do novo filme de Tim Burton, O Lar das Crianças Peculiares (Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children), que são peculiares porque não podem ser chamadas de mutantes, mas se a semelhança não lhe saltar a cara logo de início, amigo leitor, talvez você precise ficar mais atento ao que está assistindo. O curioso, para já soltar a bomba escancarada que torna esse filme uma espécie de versão kids de X-Men, é que a adaptação do roteiro é assinada por Jane Goldman, responsável por nada menos do que Primeira Classe e Dias de um Futuro Esquecido. Assim fica difícil não fazer piada.
A pior parte é que aqui também depende-se bastante de conceitos que envolvem manipulação do tempo e coisas do tipo. Parece que Burton deixou aflorar o seu lado fanboy nerd, e, aproveitando a crista da onda – que está prestes a quebrar aliás – do gênero dos super-heróis, decidiu investir na sua própria obra do tipo. Mas ao seu próprio estilo, claro. É por isso que, tal qual os pupilos de Xavier, a fleuma britânica não permite que as habilidades que eles possuem sejam chamadas de “poderes” – tornam-se, então, “peculiaridades”.
Mas as referências que dragam qualquer possibilidade de originalidade do filme não param por aí. O filme é uma adaptação da série de livros de Ransom Riggs, e os deuses do dinheiro sabem o quanto os estúdios estão desesperados para achar o próximo Harry Potter do cinema para sugar até o último centavo dos fãs.
E uma outra maneira de se colocar a sinopse do filme explica porque o filme é um candidato forte a esse cargo: Um garoto que passou a vida sofrendo bullying e sendo ignorado pelos amigos na escola descobre que na verdade é um peculiar, uma criança com poderes especiais. Após a trágica morte de seu parente – o avô Abe – Jake decide ir atrás da verdade, e ao partir para uma isolada ilha na Grã-Bretanha, descobre que não apenas não é o único, como seus amigos peculiares estão em perigo devido a um outro peculiar que se tornou maligno e agora quer ajudar seus aliados a exterminar aqueles que se opõem a ele com um plano que o levará a imortalidade. Não é piada. Essa é a trama mesmo.
Não que, obviamente, Harry Potter seja um poço de originalidade – é o básico do básico da jornada do herói campbeliana mastigada para um público infanto-juvenil. Na verdade, qualquer um que tenha um mínimo de instrução sobre narrativas míticas ou mitopoéticas, sabe que a imensa maioria desses fenômenos infanto-juvenis que ganharam os livros e telas das últimas duas décadas partem basicamente de uma mesma – e convenhamos, preguiçosa – estrutura narrativa. Então não adianta dizer “bem, não se pode criticar o filme se os livros de Riggs não ajudam”. Quem escolheu adaptar sabia que o material original não oferecia grandes possibilidades.Talvez poder-se-ia argumentar que o fato de o filme ter a marca do Burton o tornasse um diferencial. Mas aí é que começam os poréns.
Burton é um daqueles artistas cuja marca é imediatamente reconhecível. Depois que descobriu seu próprio estilo, ele imergiu nele, produzindo algumas obras muito boas, como Ed Wood, e outras, no mínimo, interessantes em algum sentido, como seus dois Batman. Mas, recentemente, ele passou a sofrer de um mal que afeta muitos artistas – confundir “estilo” com repetição.
Todos os filmes recentes dele possuem não apenas uma estrutura narrativa similar, mas desde o elenco até a direção, tudo é sempre a mesma coisa. Danny Elfman e seus malditos metalofones, Johnny Depp e sua irritante afetação, Helena Bonham Carter e sua demasiadamente fleumática atuação. Tudo feito no automático – e essa não é apenas a nossa opinião. A maneira preguiçosa como Burton conduziu seus últimos filmes virou motivo de piada até no desenho Family Guy.
De toda forma, com qualquer crítica que se possa fazer ao filme como um todo – e são muitas – O Lar das Crianças Peculiares é o filme de Burton menos Burton dos últimos tempos. Não tem Elfman, não tem Depp e – perdoem a coluna de fofocas – obviamente, não tem mais Carter. A fotografia e a direção de arte só lembram os filmes anteriores de Burton pontualmente. A trilha sonora, apesar de inexpressiva, ao menos não irrita.
As atuações são bastante prejudicadas pelo roteiro previsível, maniqueísta e raso de Goldman – os atores adultos, no papel, formam um time interessante, mas não conseguem se sustentar muito além do seu carisma pessoal. Eva Green parece estar se esforçando muito para emular Carter quando, como já dissemos, ela deveria estar indo pelo caminho contrário. O vilão de Samuel L. Jackson é tão malvado, mas tão malvado, que dificilmente dá para leva-lo a sério. Nós temos a presença surpreendente de Terence Stamp, o eterno General Zod de Superman II, mas que aqui parece estar lendo suas próprias falas em cena.
As crianças, pobrezinhas, dificilmente tem alguma chance no meio dessas afetações. Asa Butterfield, conhecido por Hugo Cabret, até tem lá algum carisma, mas seu personagem é básico demais para se criar grande empatia por ele. Já o resto das crianças peculiares parece estar ali apenas para cumprir funções básicas a trama – interesse romântico, competidor, etc. – função de Deus ex Machina (aqueles famigerados atalhos de roteiro) – como os gêmeos mascarados – ou simplesmente cumprir tabela e encher o cenário. Muito interessante para formar fã-clube, vender boneco, etc, mas absolutamente insipientes para a trama. (Uma nota a parte – definitivamente não faz sol em absolutamente nenhuma parte da Inglaterra em nenhuma parte do ano. Só isso explica a brancura dessas crianças. Misericórdia.)
Os efeitos especiais são igualmente básicos – não surpreendem, mas também não ofendem. Salvo um ou outro preciosismo que se poderia ressaltar, no geral, eles funcionam para divertir. E claro que, sendo Burton, um artista com identidade visual muito bem definida, toda a arte que envolve o filme tem claramente seu dedo. Os Etéreos parecem ter saído das pinturas e desenhos que estavam até recentemente expostas no MIS de São Paulo. E ainda existe uma breve cena em stop motion que atiça o espectador a achar que vai ter mais – mas, infelizmente, é só aquilo mesmo. Triste.
Diante de tudo isso que dissemos, até pode parecer que O Lar das Crianças Peculiares é um filme ruim. Não necessariamente. Se você é o tipo que acha interessante e gosta de consumir Harry Potter e suas crias – Jogos Vorazes, Maze Runner, Percy Jackson e lá vai cacetada… – isso é definitivamente um acerto para você. Tem tudo aquilo que você gosta e espera de um filme do gênero, sem desafiá-lo em absolutamente nenhum sentido. Nem mesmo o fato de ser dirigido por um artista extremamente característico importa muito – aqui ele está em uma jornada absolutamente genérica, onde o diretor serve mais ao filme do que o inverso. Ele pode ser muito divertido. Só.
Mas se você é um tipo mais exigente, passe para o próximo. Serão quase duas horas de algo que você já viu, em inúmeras outras formas. Porque O Lar das Crianças Peculiares pode ser muita coisa – menos peculiar.