A (re)Evolução da Esquerda em O Jovem Karl Marx
Quem costura as nossas roupas? Quem constrói os móveis de nossas casas? Quem faz a limpeza de grandes propriedades? Quem colhe e planta o alimento de centenas de mesas de casa? Quem produz bens de consumo? A mão pobre… Então, por que não é dado ao pobre seu respectivo valor enquanto ser humano? Essa inquietação, baseada no pensamento de Eduardo Marinho (um filósofo de rua), parece ser um dos diversos sentimentos com os quais saímos após a sessão de O Jovem Karl Marx (Le Jeune Karl Marx), de Raoul Peck. Obra que resgata a origem de um dos pensamentos mais impactantes na trajetória da ideologia de esquerda: o marxismo.
O Jovem Karl Marx mostra reflexões que vão muito além de questões centradas unicamente na crítica a um socialismo ultrapassado à época – período da Revolução Industrial (séculos XVIII-XIX) –, mostrando também questões que ecoam até hoje em contínuos debates entre a esquerda e a direita política. Uma delas é exatamente a contraposição entre estudiosos de diferentes camadas sociais, partindo de conflitos de ideias pelos diferentes pontos de vista – mais próximo ou distante da realidade final à qual o comunismo direcionava-se na época –, algo que é mostrado como a base para o embate ideológico entre Karl Marx (August Diehl) e Friedrich Engels (Stefan Konarske), fundamentando a história de amizade desenvolvida na obra.
(Interessado em cinebiografias? Confira também as críticas de Além das Palavras, Trumbo e Professor Marston e As Mulheres-Maravilhas)
A complementação da visão de Marx através dos estudos de Engels é o grande ponto de encontro na narrativa, que dá vida ao início da obra intelectual do sociólogo e do teórico, culminando na minuciosa busca que o protagonista empreende com a sua literatura.
Temos assim a posição histórica e social de Marx em seu longo conflito com o socialismo crítico-utópico – também denominado como socialismo dos burgueses –, pelo qual esperaria-se uma conscientização da burguesia, através das ciências sociais, para que um estado socialista fosse implementado nos governos europeus. Diferentemente, o que vemos é a escrita das ideias de Marx e Engels relacionadas ao socialismo científico – nomeado hoje como marxismo –, defendendo que a ascensão revolucionária do proletariado eliminaria a burguesia e traria a abolição da propriedade privada (base do pensamento comunista moderno).
Dessa maneira, enxergamos mais do que uma simples evolução do conceito socialista inicial, mas o fato da necessidade, naquela época, de sair das ideias abstratas e de atingir o fator real e concreto da luta pela diminuição da desigualdade social. Fato este que não apenas permitiria o desenvolvimento da escrita do Manifesto do Partido Comunista, como também de sua utilização na Revolução de Fevereiro (França, 1848), possibilitando nova roupagem ao lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” – algo mostrado de maneira muito poética e instigante pela projeção.
Da polarização social às ideias feministas
Partindo também da base histórica da Luta de Classes, seguindo o marxismo, é nítida a relação antagônica entre os valores sociais e os valores comerciais, algo mostrado no filme de maneira muito especial em cenas que retratam a dura realidade do proletariado diante da burguesia no período da Primeira Revolução Industrial, indo a fundo nas questões do trabalho (jornada exaustiva, exploração infantil, insegurança no ambiente e submissão das mulheres).
E sobre isso temos também em O Jovem Karl Marx a adição de debates mais contemporâneos durante a narrativa. Assim, o protagonismo feminino na narrativa também é peculiar e enaltecido pelo filme, o que promove um encontro do espectador também com questões em conflito, ainda hoje, em debates políticos. Dessa forma, dar voz às mulheres – proporcionando, inclusive, a representação do ativismo de Rose Burns (Hannah Steele), namorada de Engels – é muito sintomático durante a história.
Com isso, associam-se alguns fatos e momentos do processo de escrita dos amigos à visão particular das moças, contribuindo diretamente às ideias comunistas. Ademais, o posicionamento de Mary também vai contra o pensamento machista e patriarcal, como a desobrigação da mulher ser mãe e/ou o enaltecimento da independência feminina, em termos gerais.
Mostra-se clara também a desconstrução e reconstrução de valores familiares, de ideologias políticas e do movimento de esquerda em si, o que não apenas contribui à evolução narrativa da amizade de Marx e Engels como complementa-se de forma coerente e precisa com o que o filme propõe. E isso é claro também pela intensa procura por uma consolidação concreta de ideais, não apenas através da luta, mas principalmente pela reflexão contínua do pensamento socialista de Marx no filme, sempre confrontando o sistema econômico da época.
Conforme pôde ser aqui percebido pelo leitor, a narrativa em si é uma crítica histórica ao sistema liberalista ecônomico devido ao capitalismo exacerbado, definindo como ele reordena valores humanos em valores monetários, dessocializando o homem e desumanizando-o de suas relações de afeto com o próximo. Por outro lado, seu teor um tanto propagandístico – praticamente uma “cinebiografia” sobre o Manifesto do Partido Comunista – atrapalha por deixar sua história muito romantizada e quase maniqueísta, o que também retorna ao problema comum da “glamourização” de qualquer doutrina ou movimento político.
Todavia, O Jovem Karl Marx é uma obra que resgata não apenas uma das épocas essenciais aos movimentos de esquerda, mas também a inquietação de diálogos políticos fundamentais referentes à desigualdade social econômica. E apenas nesse aspecto sua projeção torna-se importante contemporaneamente, já que o mundo encontra-se numa crescente e excessiva onda de liberalismo econômico e de conservadorismo social.
É preciso dar continuidade às reflexões, pois tudo “o que era sólido e permanente se desmancha no ar” (Engels e Marx, 21/02/1848).