O britânico John le Carré é um dos mais profícuos e emblemáticos escritores de espionagem de todos os tempos. Há 55 anos, seus livros têm entretido públicos de todas as idades ao narrar com riqueza de detalhes humanos, sociais e psicológicos a complexidade do mundo da espionagem internacional sem, contudo, cair na armadilha de histórias fechadas e textos rebuscados. Muito ao contrário, seu linguajar fluido e a experiência real que teve no serviço de espionagem britânico resultaram em obras extremamente conhecidas e apreciadas, que renderam grandes adaptações para o cinema.
Desde quando O Espião que Saiu do Frio (The Spy who Came in from the Cold, Martin Ritt, Reino Unido) foi lançado, em 1965, baseado em um livro homônimo de le Carré publicado dois anos antes, os filmes de espionagem ganharam um contraponto ao James Bond de Ian Fleming. Enquanto este encarnava o estereótipo do agente secreto sedutor e anti-heroico, tornando-se referência deste tipo de personagem até hoje, o universo criado por le Carré era muito mais complexo e analítico, convidando o público a mergulhar não apenas nas desventuras de um ícone, mas em um mundo completamente novo instigante. Nunca focado na criação de uma franquia popular, mas sim em um diálogo com o público sobre o cenário político global e os perigos que ele esconde: uma sugestão de que a realidade pode ser muito mais perturbadora que a ficção.
Nosso Fiel Traidor (Our Kind of Traitor, Susana White, Reino Unido) é oitavo filme baseado em uma obra de John le Carré. A história reúne temas caros ao escritor inglês e ingredientes já aprovados em experiências anteriores no cinema e na televisão. Na tela, o espectador será tomado por diversas sensações de déjà vu, mas com um quê de novidade. Porém, se você já leu o livro, ou ao menos pesquisou sobre ele na internet após assistir ao filme, ficará com forte impressão de o que viu, não foi um Le Carré, mas apenas mais um caça-níquel.
Na história, o professor universitário Perry (Ewan McGregor) está de férias em Marrocos com a esposa Gail (Naomie Harris), na tentativa de reatar a relação após uma traição. Durante um jantar em que as coisas não acabam bem entre o casal, Perry conhece Dima (Stellan Skarsgård), que logo se revela um membro de alto escalão da máfia russa. Sem saber muito bem o porquê (e o público muito menos), o pacato professor aceita ajudar Dima a conseguir asilo político na Inglaterra para ele e a família via MI6, o serviço britânico de inteligência, em troca dos nomes de políticos, advogados e banqueiros britânicos envolvidos em um esquema internacional de lavagem de dinheiro e corrupção.
O que poderia ser um excelente argumento à la Alfred Hitchcock, acaba se perdendo em uma narrativa rasa e tímida, que parece ter medo de afugentar o espectador com um aprofundamento mais refinado na psicologia dos personagens, além de uma melhor elaboração da encrenca em que se metem. O filme tenta fazer referências a Hitch, sobretudo a O Homem que Sabia Demais (1956) e Intriga Internacional (1959), ao colocar um cidadão comum em uma enrascada com poderosos internacionais, mas se entrega a saídas fáceis no roteiro, sem se preocupar com em dar argumentos lógicos para o espectador. Em vez disso, prefere partir logo para cenas de ação e suspense, mas estas também feitas superficialmente e sem qualquer tensão ou carga dramática. Por exemplo, em uma das cenas mais importantes do filme, quando o esconderijo da família é descoberto, a solução apresentada para o roteiro é tão irritantemente breve e superficial que parece ter sido escrita às pressas, como alternativa a um inesperado corte de orçamento.
O roteiro é o principal ponto fraco de Nosso Fiel Traidor. Os argumentos da história são fracos e inverossímeis no mundo absurdamente informativo em que vivemos. O suspense central é permeado por pequenas tramas paralelas não levam a lugar nenhum e nada acrescentam ao conjunto, ao contrário do que fazem parecer quando são inicialmente apresentadas. A sensação de frustração é inevitável. Ao contrário de outros filmes inspirados em le Carré, normalmente sérios e centrados no drama e no suspense, este é recheado de pequenas doses de humor, normalmente em momentos inapropriados. Porém, o que mais incomoda é a estrutura da trama principal que, quando olhada para além da superficialidade narrativa, é totalmente sem sentido. A movimentação de Perry é inexplicável, a ponto de ser piada dentro do próprio filme, que zomba de si mesmo. Em determinado momento, os personagens principais se perguntam por que estão fazendo aquilo e por que estão ali, sem obter resposta, como que percebendo o sentimento da plateia que os assiste. Em resumo, a obra é o oposto do que se encontra na bibliografia do autor que o inspirou.
O que pode salvar esta produção é o elenco. Apesar das fortes limitações do roteiro, Ewan McGregor convence como professor chateado consigo mesmo que encontra, na oportunidade de aventura, uma oportunidade de resgate da própria autoestima. Muito destaque também para Naomie Harris, que rouba todas as cenas em que aparece como a esposa que, embora contrariada, segue o marido nos apuros em que se meteu. Sua personagem acrescenta menos do que poderia à trama, mas muito mais do que pede o roteiro, graças ao esforço da atriz. Stellan Skarsgård faz um bom trabalho ao conduzir Dima entre o drama e a comédia com sutileza e coerência, funcionando com um bom contraponto cômico. O talento dos três protagonistas, aliado a uma boa direção de arte, fazem de Nosso Fiel Traidor, um passatempo até eficiente, embora esquecível.
Em 2016, John le Carré completa 85 anos de uma vida intensa e digna de cinema. Já escreveu 25 livros e ainda está ativo, com o lançamento de The Pigeon Tunnel para ainda este ano na Europa. Ao sempre jogar um olhar crítico e analítico sobre os problemas do mundo contemporâneo, uma obra tão vasta ainda será capaz de gerar muitos excelentes conteúdos para o cinema. Espera-se que os próximos tenham, de fato, a qualidade e o aprofundamento que o autor merece.