O filme Negação é um drama de tribunal muito eficiente
Eu sou um crítico feroz daquilo que considero ser uma saturação de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, ou, mais especificamente, o Holocausto. A impressão que tenho é a de que todas as histórias e perspectivas possíveis sobre o período já foram abordadas de uma ou outra maneira pelo Cinema. No entanto, enquanto assistia ao filme Negação (Denial), me vi constantemente surpreendido. Embora trate indiretamente do Holocausto, o filme, ainda assim, é capaz de apresentar ao público elementos que ele talvez desconheça por completo, resultando em uma obra relevante pelos seus aspectos históricos.
Baseada em fatos, a história do filme gira em torno de Deborah Lipstadt (Rachel Weisz, vista em A Luz Entre Oceanos). Judia e trabalhando como professora universitária e pesquisadora acadêmica, ela dedica a sua carreira à combater aqueles que insistem em negar a veracidade histórica do Holocausto. Certo dia, após ser confrontada em público numa de suas palestras, ela é processada por difamação pelo escritor e negacionista David Irving (Timothy Spall). Tendo de se mudar momentaneamente para Londres em razão do julgamento, ela, além de precisar enfrentar a pressão natural da situação em que se encontra, entra em conflito com a estratégia adotada pelos dois advogados responsáveis por seu caso, Anthony Julius (Andrew Scott) e Richard Rampton (Tom Wilkinson).
A grande novidade apresentada por Negação (ao menos foi para este crítico) é a revelação de que existe toda uma cultura empenhada em negar veementemente que o Holocausto aconteceu. Beneficiada pela quase que total ausência de relatos ou documentos que comprovem a veracidade do acontecimento (uma outra novidade surpreendente), essa cultura tem a intenção de exculpar a figura de Adolf Hitler e colocar em xeque a fidedignidade dos relatos feitos pelas vítimas, fazendo com que o surgimento de novos movimentos nazistas e antissemitas ao redor do Mundo se torne algo legítimo e normal.
Chocante por si só, essas novidades possibilitam ao filme um estudo aprofundado do personagem interpretado por Timothy Spall. Possível de ser adjetivado com todas as palavras escabrosas da língua portuguesa, ele é um sujeito detestável cuja personalidade é um mistura perigosa de auto vitimização, ego inflado e ausência de comportamento moral e ético. E será na ligação desse personagem com o movimento negacionista que o filme ganhará força, acabando por fazer com que a obra se destaque entre os inúmeros dramas sobre o Holocausto lançados anualmente.
No mais, Negação é um típico, porém eficiente, drama de tribunal. Nele, há o primeiro ato dedicado à introdução dos personagens e do caso que será julgado. Já o segundo e terceiro são construídos em cima do julgamento, com espaço para todas as convenções do gênero: discursos edificantes, momentos em que os advogados são brilhantes ou adversário parece estar vencendo, o famoso suspense antes da sentença final. Apesar de pouco originais, esses elementos, se bem trabalhados, costumam funcionar. Felizmente, neste filme, eles são perfeitamente eficientes dentro da trama.
Trama que, por sua vez, aborda inicialmente o choque proveniente do poder de persuasão que um discurso tão incabível como o dos negacionistas possui sobre algumas pessoas. Para, posteriormente, a partir do momento em que a protagonista é apresentada à equipe de advogados responsáveis pelo caso, passar uma boa parte do tempo explorando o conflito que surge entre as visões dela e a estratégia adotada por eles. Virando, ao fim, um libelo contra discursos de ódio e extremismo político.
Às vezes, essas diferentes instâncias narrativas criam uma certa instabilidade. O roteiro escrito por David Hare, a partir do livro autobiográfico da própria Deborah Lipstadt (History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier), oscila entre essas três vertentes. Em alguns momentos, tem-se a impressão de que o filme não está decidido sobre qual será a sua principal abordagem. Mas, na maior parte do tempo, o todo da obra é bastante coeso, abrindo espaço para que cada um dos elementos presentes na narrativa seja bem desenvolvido e explorado com eficiência pela história.
Já no que diz respeito às concepções visuais, Negação também irá trabalhar com as convenções. Introduzindo os ambientes através de um plano geral e depois alternando primeiros planos e planos americanos para mostrar os personagens falando ou reagindo a uma fala (nos momentos que se passam fora do tribunal, há bastante plano e contraplano) a decupagem do filme é simples e muito similar à de vários outros filmes, não só de tribunal.
A comovente cena em Auschwitz
No entanto, há uma cena que se passa em Auschwitz que merece destaque pelo seu poder de comoção. Silenciosa e sensível, essa longa cena tem dois momentos marcantes: o belíssimo giro de câmera que revela ao espectador o amontoado de pertences das inúmeras vítimas que morreram nas câmaras de gás e o momento íntimo compartilhado pela protagonista, um outro personagem e todos aqueles que foram brutalmente assassinados, se abraçando todos em uma prece sofrida.
Por fim, a fotografia de Haris Zambarloukos também merece ser destacada. Investindo em tons pastéis, amarronzados e escuros no começo do filme e nas cenas que se passam no tribunal, o diretor de fotografia consegue captar com eficiência a melancolia do filme através da iluminação azulada com que fotografa Londres. E, na mencionada cena de Auschwitz, ele trabalha com um branco pálido e sem vida que, auxiliado pela densa neblina do local, dá ao momento um sentimento claustrofóbico e até mesmo metafísico.
Com atuações sóbrias de Rachel Weisz, Tom Wilkinson e Timothy Spall, Negação, assim como o recente filme russo Paraíso, é importante para nos mostrar que, até mesmo quando achamos que não há mais o que ser abordado em um determinado assunto, sempre há uma história nova e diferente esperando para a ser contada. Desta vez, foi a revelação do movimento negacionista no bonito filme de Mick Jackson.