Nas Estradas Do Nepal é um conto sobre a inocência
Em 1962, um jovem diretor de 30 anos de idade chamado Andrei Tarkovsky surgiu no cenário cinematográfico mundial com o longa A Infância de Ivan. O filme contava a história de um garoto enfrentando os horrores da Segunda Guerra Mundial. Tendo como ponto central o choque entre a inocência idílica e a crueldade da vida adulta, a obra foi a responsável por introduzir ao público o estilo marcante do cineasta, repleto de misticismo, poesia e sequências de sonho arrebatadoras. Min Bahadur Bham, o diretor nepalês que acaba de estrear em longas com o filme Nas Estradas Do Nepal (Kalo Pothi), ao contar uma história similar à da obra de 1962 e integrar ao seu possível estilo o elemento onírico característico dos filmes de Tarkovsky, é um dos poucos nomes recentes que me fizeram lembrar positivamente do gênio russo – em uma escala muito menor, obviamente.
O roteiro, escrito pelo próprio diretor ao lado de Abinash Bikram Shah, narra a jornada do menino Prakash (Khadka Raj Nepali, maravilhoso no papel). Vivendo com a sua família numa vila miserável localizada no norte do Nepal, ele, juntamente com a sua irmã (Hansha Kadkha), raptam uma das galinhas que seriam usadas pelo seu pai (Jit Bahadur Malla) como oferenda à vinda do rei. A ideia dos dois irmãos é criá-la secretamente para, no futuro, depois de vender os seus ovos, usar o dinheiro para ir embora do vilarejo.
No entanto, logo após a irmã abandonar o lar para se juntar a uma das milícias maoistas que aterrorizam a região, Prakash descobre que o seu pai vendeu a galinha a um andarilho comerciante. Recusando-se a deixar para trás o seu sonho, o ousado menino e o seu melhor amigo, Kiran (Sukra Raj Rokaya) partem numa dura jornada em busca do animal.
Situada em algum momento entre os anos de 1996 e 2006, a história de Nas Estradas Do Nepal tem como pano de fundo a revolta maoista que, além de ameaçar ferozmente a monarquia governante do país, arrebatou à sua causa inúmeros adolescentes e crianças (estes aderiam à luta muito mais involuntariamente do que o inverso). Nessa contextualização, um dos elementos que mais impressionam é a complexa noção de seus realizadores sobre a realidade concreta do Nepal.
Embora critiquem – muito corretamente, por sinal – a influência disruptora e assassina do pensamento comunista sobre o campesinato (para reforçar essa crítica, há letreiros nos créditos finais informando dados assustadores), eles retratam cruamente a situação lastimável na qual o povo nepalês se encontrava durante o período monárquico, mostrando que a miséria circundante fora essencial para o nascimento do movimento maoista.
Esse cuidado na apresentação da verdadeira situação social, política, cultural e econômica do Nepal deixa claro para o espectador que o objetivo do diretor e da sua equipe não será o de realizar uma obra propagandística ou doutrinária, mas sim o de apresentar um retrato fiel e pungente de uma realidade específica num determinado momento. No entanto, é curioso notar que essa realidade, ao passo que é importantíssima para o envolvimento emocional e intelectual do público mais exigente e atencioso, aparentemente é pouco ou nada relevante para o protagonista, já que, como toda criança, ele vive num mundo à parte, permeado por seus sonhos de liberdade. E será no conflito originado a partir dessa tensão entre a pobreza visual, moral e imaginativa da vida adulta e a riqueza interior da inocência infantil que o filme achará o seu caminho e ganhará força (como A Infância de Ivan).
Porém, como deixei indicado no parágrafo acima (quando usei o termo “aparentemente”), essa indiferença do protagonista com a realidade ao redor não é total. Sendo apresentada já na primeira cena através de um lindo travelling (com as montanhas do Nepal em segundo plano), a galinha pode – e deve – ser enxergada como um símbolo do tímido, mas poderoso protesto infantil de Prakash.
Apesar de quase todas as crianças sonharem inocentemente com a riqueza (para poder comprar mais brinquedos, por exemplo), o protagonista, assim como a sua irmã (é interessante notar como as inquietudes da adolescência fazem com que a irmã se iluda com o discurso utópico, enquanto o desprendimento infantil faz com que Prakash continue procurando pela galinha apenas), sonham com a opulência financeira para poder viver dignamente. Isso mostra que ambos já tinham ciência do triste futuro que lhes esperava.
As influências de Andrei Tarkovsky
E é essa noção que Prakash tem da própria realidade que nos traz às duas sequências de sonhos magistralmente compostas por Min Bahadur Bham e o diretor de fotografia, Aziz Zhambakiev (um nome para ser lembrado). Filmadas em câmera lenta (um recurso usado extensivamente por Tarkovsky nas suas passagens de sonho), ambas as cenas refletem o pavor sentido pelo protagonista frente às possibilidades futuras que o Nepal lhe reserva.
A primeira dessas cenas foca o personagem em primeiro plano olhando para a câmera (quebrando a quarta parede, portanto) enquanto vários adultos desfocados andam de cabeça baixa em segundo plano. Depois de encarar o espectador durante um bom tempo (num momento desconfortável e perturbador), ele se vira e caminha em direção aos homens, se juntando à multidão submissa (toda a lógica dessa cena é similar à de uma das sequências de O Espelho). Claramente, um dos possíveis destino de Prakash é a triste resignação.
Já a segunda dessas cenas (a mais brilhante das duas) é muito mais longa (por isso, mais desconfortável e perturbadora) e tem a presença assustadora de algumas das principais forças atuantes no Nepal. Fazendo um giro de 180º (da direita para a esquerda, ou seja, do lado fraco do quadro para o mais forte), o protagonista se depara com monges budistas, soldados da Força Militar, padres da Igreja Católica e muçulmanos praticando a Salá. Olhando atentamente para todos, ele sai de cena, não se juntando a nenhum. Recheada de símbolos e elementos religiosos (como na maior parte das passagens oníricas de Tarkovsky), essa cena é mais otimista que a primeira, mostrando um protesto silencioso do protagonista.
Por fim, outros elementos visuais que merecem ser destacados são os eficientes planos gerais (sempre integrando os personagens à vasta paisagem) e os constantes movimentos de aproximação e afastamento da câmera, revelando os dramas humanos de perto e, posteriormente, se afastando, o que cria um efeito cinematográfico poderosíssimo.
Enviado ao Oscar para ser o representante do país na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, Nas Estradas Do Nepal não foi sequer indicado (dois outros filmes, o bom Sieranevada e o ótimo Paraíso, da Romênia e Rússia, respectivamente, também não o foram). Isso é um fato a ser lamentado, pois seria uma ótima divulgação para o filme. Além disso, representaria a oportunidade de apresentar um pouco do cinema nepalês ao público geral. Infelizmente, isso não aconteceu. Porém, para os poucos afortunados que vão assistir ao filme, ficará a maravilhosa impressão de que é no Nepal que surge um cineasta diferente e ousado cuja qualidade é capaz de nos trazer à mente o nome do mestre Andrei Tarkovsky. Não é qualquer diretor que consegue realizar essa proeza.