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Much Loved – As não tão amadas!

Much Loved

Karl Marx, quando construiu o conceito de fetiche de mercadoria, focou em um dos maiores temas da ontologia humana: a relação dos homens com as coisas. Estas, neste fetiche, ganham vida própria e aparentam ter uma existência fora do domínio dos humanos que a produzem. As coisas são humanas e os humanos são as coisas nesta relação. Em Much Loved a relação homem x mulher ganha contornos mais graves ao nos depararmos com a constatação de que o corpo feminino, meio pelo qual se chega à mercadoria sexo, é muito menos que um humano, ou pior, muito menos que uma coisa.

A história acompanha a rotina de três prostitutas da cidade de Marraquexe, em Marrocos. Noha (Loubna Abidar), Randa (Asmaa Lazrak) e Soukaina (Halima Karaouane) são acompanhadas por uma câmera invariavelmente trêmula em suas idas e vindas de festas com homens endinheirados. Randa possui dificuldades de praticar seus programas, enquanto sonha ir para a Espanha; Soukaina mantém um affair com um homem que rechaça sua profissão (a ironia é que depois de uma transa, ela é quem o paga).

Much Loved

O diretor Nabil Ayouch produz uma narrativa,  se não dinâmica, intensa. A câmera sempre frenética enquadra ora os rostos maquiados, ora os corpos dançantes das personagens, a dar-nos a sensação do inquietamento delas, mesmo que estejam entre risadas e algazarras. Tudo sem glamourização. Em nenhum momento sequer o diretor faz o apelo da moralidade para julgá-las, mas, entre maquiagens e sorrisos, são as palavras que também traduzem a condição delas no meio patriarcal hostil. Em um jantar com um milionário saudita, ele afirma” Somos donos do mundo porque temos petróleo”. Ao que uma delas rebate: “Nós somos seu petróleo”. E outro homem comenta: “Nossas mulheres estão como esta carne. Mortas!”

Outro elemento estético é o mosaico da vida cotidiana de Marraquexe, construído a partir de uma câmera interna no carro que as leva e as traz. O diretor aqui nos deixa o recado, bem claro, de que o que elas passam não está dissociado das engrenagens que movem a sociedade dos homens.

No entanto, a grande força do filme está em Noha, que, para manter o grupo sossegado em seus programas, se coloca à frente de agruras, como por exemplo, levar um tapa de um policial e ainda lhe pagar um suborno. Conforme o enredo vai se passando, vemos toda a sua fragilidade aparecendo em suas visitas à mãe, irmão e o filho pequeno, o único que não lhe nega respeito e carinho. A personagem ainda se depara ainda com outros fatos gravíssimos, mas Loubna Abidar constrói sua personagem no tom que lhe apetece: por mais que esteja diante das mazelas impetradas pelos homens, passa por elas com uma expressão facial de dignidade e tristeza simultâneas. Mas logo o acolhimento a uma quarta garota de programa estabelece toda a fortaleza que Noha simboliza para as suas companheiras. E somando tudo isto a uma cena intensa com um amante, está explicado quem tem tanto amor para oferecer em relação ao título do filme.

Much Loved

Much Loved é um retrato da pobreza dentro de um sistema em que dinheiro e patriarcado fazem uma parceira para o massacre daquelas que nada têm de oferecer além de seus corpos, a fim de sobreviver. É da miséria de mulheres reduzidas a nada além de si mesmas, que trabalham com seus corpos como fazem os outros animais. E, mesmo assim, o desfecho do filme não soa pessimista, pois simboliza que a vida plena é possível quando há a união destas mulheres na luta, mesmo que por um efêmero raio de sol diante do horizonte. É onde reside a plenitude, onde o espaço e o tempo permite que estas mulheres sejam muito mais que coisas e corpos, permite que sejam simplesmente humanas.

P.S.: A atriz Loubna Abidar foi vítima de uma campanha de ódio em Marrocos, pois o governo censurou o filme, alegando que este construía uma imagem degradante da mulher marroquina. Ela sofreu um sequestro relâmpago e três homens a agrediram durante os minutos que ela ficou no carro deles. Ao ir à delegacia, foi zombada. Depois disto, decidiu por um exílio voluntário na França. Ironia, já que os que a agrediram e zombaram dela deram razão total às denúncias que o filme faz.

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