A narrativa de Rodin se concentra na vida pessoal do famoso escultor
No filme Rodin (Idem), novo trabalho do diretor Jacques Doillon, há uma cena em que o protagonista (Vincent Lindon), ao perseguir a mãe de seu filho para ter relações sexuais com ela, fica fora do quadro enquanto uma escultura de Jesus Cristo ocupa o centro. Tecnicamente simples, esse momento sintetiza o que foi a vida do escultor: no cerne, a arte, cuja perfeição é simbolizada pela figura máxima da espiritualidade cristã; na periferia, a obsessão sexual que lhe custou a saúde e as relações amorosas.
Roteirizada pelo próprio diretor, Rodin é uma cinebiografia que foge das convenções do subgênero. Em vez de nos mostrar o nascimento, vida e morte do escultor, retrata um curto período de sua existência, investindo em um ritmo extremamente lento – o qual, por vezes, se torna arrastado – e, no que é uma ousadia narrativa rara nesse tipo de produção, dedicando um tempo considerável à manufatura das obras de arte. Assim, através de um andamento bastante cadenciado, o espectador tem a chance de conhecer um pouco sobre o processo criativo de um artista e os relacionamentos mantidos pelo biografado com Camille Claudel (Izïa Higelin), Paul Cézanne (Arthur Nauzyciel), Claude Monet (Olivier Cadiot) e outros.
No entanto, seria um erro dizer que são esses aspectos que fazem Rodin se destacar das de mais cinebiografias. Embora pouco usuais, essas características não são inéditas na história do cinema. Na verdade, não é preciso ir muito longe para lembrar de filmes que empregaram alguns desses elementos. O que, de fato, chama atenção no longa de Doillion é a maneira como o diretor se apropria das ferramentas cinematográficas para criar um forte contraste entre a perfeição – que só pode ser obtida através da arte – e as turbulências emocionais inerentes à condição humana.
Quando a arte deixa de imitar a vida
Muito já se foi dito sobre as semelhanças entre a vida e a arte. Até uma expressão foi criada para sintetizar as similaridades – e que Oscar Wilde subverteu posteriormente. Todavia, raramente se comenta sobre as diferenças, ou, mais precisamente, sobre a distinção fundamental entre as duas: a supracitada perfeição. Objetivo final de todas as criações artísticas, ela é só é plenamente atingida depois de muito esforço, entrega e sofrimento. Na vida costuma ser assim também, mas o resultado nunca é pleno, uma vez que o máximo que obtemos de nossa lida é uma melhora comportamental, de caráter e intelecto.
Presente na vida de todos os artistas, é justamente essa dualidade que Doillon e sua equipe captam perfeitamente. Impressiona ver a maneira como a iluminação natural de Christophe Beaucarne (o mesmo do excelente Um Instante de Amor) e os longos planos concebidos pelo diretor (alguns duram vários minutos) geram uma atmosfera pacífica, na qual a ambientação e cada movimento de câmera parecem estipulados por um força espiritual, o que contrasta completamente com os dramas vivenciados pelos personagens. É como se a técnica cinematográfica refletisse a perfeição divina da arte e a narrativa, as conturbações interiores dos seres humanos (não é à toa que a maioria das interações do protagonista com Camille são acompanhados pelos acordes fortes de Philippe Sarde).
Dessa maneira, além de também apresentar ricos simbolismos (antes de a história iniciar, Rodin está esculpindo a Porta do Inferno, o que é uma metáfora para a sua futura decadência) e terminar com um forte comentário sobre a indiferença da contemporaneidade às obras artísticas, Doillon, em uma época na qual os diretores sacrificam a estética cinematográfica para transmitir exageradamente as mesmas sensações dos personagens (vide Mãe!), propõe o contrário: cria uma estética separada, a qual o personagem principal só consegue refletir nas esculturas, mas nunca em sua vida. Dentro de um subgênero conhecido pela mesmice e a mediocridade, a coragem e qualidade deste filme surgem como refrescantes sopros de sensibilidade e inovação.