Um Rifle na mão e um conflito na cabeça
Um dos sentimentos que mais inquieta o ser humano é o característico medo do externo, daquilo que pode ameaçar sua maneira de viver ou sua forma de observar o mundo. Tecnicamente divergente do atual cinema comercial, Rifle, de Davi Pretto, é uma trama em que o personagem mais misterioso é o protagonista, cujas motivações são expressas por um diálogo minimalista, dentro de um conflito entre sua vontade e o momento no qual se encontra. Tudo a partir de seu ponto de vista particular, presente numa ambientação rural em contraponto com o real urbano.
(Confira também a crítica de outro novo exemplar do nosso cinema, O Filme da Minha Vida, de Selton Mello, que também esteve em Soundtrack)
Na história, o caos dramático de Dione (interpretado por Dione Oliveira) se inicia quando um proprietário rural tem interesse em comprar as terras onde o personagem vive junto com uma família. Isso torna-se ainda mais dramático quando Dione percebe que os integrantes da família sentem, na oferta, a oportunidade da mudança para uma cidade grande, almejando outros sonhos e possíveis conquistas. Como contraponto, em alguns dos primeiros momentos do filme vemos diversas fotografias da família mostrando como que eles se criaram e construíram tudo o que possuem através da fazenda, demonstrando aquele tradicional valor interiorano ligado à terra, ao trabalho rural. Um sacrifício que, curiosamente, estão dispostos a fazer.
Dessa forma, pelo medo das grandes metrópoles por enxergá-las como consumistas, frustradas e egoístas, Dione se encontra num conflito interno, pois ao mesmo tempo em que luta para manter-se na vida rural, observa que pode ser inevitável sua transição ao urbano.
Ainda que o filme já nos mostre essa situação de isolamento social e mental de Dione, também trata-se de um estudo desse personagem, no qual – durante o desenvolvimento da narrativa, completamente focada em seu ponto de vista – veremos indícios que formatam o personagem até a sua realidade presente, culminando na revelação de quem ele é e do porquê de suas motivações. Os momentos em que Dione se encontra, desde os relatos rurais até as ambiguidades dos personagens, nos mostram a trajetória do protagonista através de um interessante trabalho de pista e recompensa no roteiro, ainda que necessite de certa atenção do espectador pela sua sutileza.
Nesse desenvolvimento, uma das questões instigantes é a forma como as ações do protagonista caminham da diplomacia à agressividade, dentro das suas limitações pessoais, ao mesmo tempo em que Dione vai se reinventando e se readaptando ao que é oposto a ele, com muita suavidade durante o filme. E isso está adicionado ao fato de tomar atitudes que fazem dele próprio o grande causador de sua solidão angustiante, que cresce gradualmente na narrativa através de um pensamento imutável e intenso referente ao seu “inimigo” (o urbano).
Assim, temos um personagem completamente em conflito também consigo mesmo, como se observasse suas ações como algo necessário, porém inútil, reconfortante, porém desesperador, e assim por diante, num ciclo contínuo de reinterpretações, e tudo isso com o mínimo de diálogo e dinamismo possível. Percebe-se, portanto, um roteiro preciso direcionado a uma das principais possibilidades no cinema: o trabalho da história através da imagem, com o maior ponto positivo sendo o seu contraponto dramático.
Forma e Conteúdo
Do lado do espectador, o que pode mais inquietá-lo é a linguagem audiovisual empregada na obra. Conduzida com simplicidade e minimalismo em quase uma hora e meia – numa forma que vai contra o alto dinamismo visual e melodramático em filmes atuais –, a linguagem possui destaque sobre três aspectos do filme: o medo do externo, o isolamento do protagonista e o contraponto entre a calmaria do ambiente e a angústia interna em sua história.
Um trabalho pontual é a construção noturna no filme, com planos fortemente escurecidos em meio a uma fotografia silhuetada, que enaltecem o isolamento de Dione e a sua aversão ao urbano. Referente a essa solidão há também a presença de vastos planos gerais com a figura isolada do personagem, isso além do tratamento dos quadros com pouquíssima movimentação da câmera, quase todos estáticos, usando da simplicidade para a identificação das angústias do personagem. E na identificação desse sofrimento interno também cito o desenho sonoro, mostrando a inquietação do personagem através dos sons urbanos invadindo seu ambiente rural.
Assim, servindo de maneira precisa ao roteiro, a linguagem mostra-se como um dos melhores aspectos técnicos desse filme, já que demonstra um trabalho de sinergia ideal entre escrita e estética, no qual uma complementa a outra durante a narrativa. E de maneira geral, Rifle é uma obra que traz uma história simples, mas que cria curiosidade pela sua forma de construção, na qual compreender as motivações de seu protagonista é tão importante quanto a expectativa pelo fim de sua trajetória. Um conflito entre rural e urbano sob um ponto de vista solitário e trágico.