A história do Plano
1994. Há 23 anos, um grupo de economistas implantou uma estratégia que iria mudar a economia no país. Capitaneados por um sociólogo, o então ministro da fazenda, eles implementaram medidas que equipararam a moeda com o dólar e resgataram o “valor real” das coisas. Esse plano econômico é o de maior sucesso até hoje na história do país. Mas nada é de graça e essa é a premissa do filme Real – O Plano Por Trás da História, thriller político dirigido por Rodrigo Bittencourt (de Totalmente Inocentes, 2012).
Baseado no livro 3.000 dias no Bunker, de Guilherme Fiuza, coloca no papel de protagonista o economista Gustavo Franco, vivido por Emílio Orciollo Neto. O personagem é bastante trabalhado, apresentando várias camadas e alterna momentos entre herói e anti-herói, o que é um ponto positivo para o filme. Gustavo é arrogante, determinado e difícil, com uma visão bastante definida de economia e política que permeia o filme. Em alguns momentos percebemos uma construção do personagem que se assemelha a anti-heróis modernos, como Frank Underwood, de House of Cards (tema de um Formiga na Tela).
Essa visão vai guiar o personagem por toda a sua trajetória no período abordado pelo filme, que vai da época como professor acadêmico até a CPI do Banestado, em 2003, que foi criada para investigar seus atos durante sua permanência no governo, tanto como um dos criadores do Plano Real, quanto na presidência do Banco Central.
Uma entrevista pouco antes da CPI é o fio condutor do filme, lembrando a forma narrativa apresentada em Jackie (2016). Começando a analisar, inicialmente como obra cinematográfica, Real é um filme que tem uma boa estrutura de roteiro, personagens bem trabalhados e um ritmo muito bom. Na entrevista coletiva após a exibição, o produtor Ricardo Fadel Rihan afirmou que o ritmo mais acelerado foi um pedido feito ao roteirista Mikael Albuquerque para adequar a narrativa a um público jovem que não viveu aquela época. O pedido foi atendido.
Mikael criou uma história que prende e que demonstra um avanço grande em relação ao roteiro de A Glória e a Graça, seu filme anterior. Mas ele tem alguns trejeitos que permaneceram aqui, como o excesso de NOMES ditos em cada frase e cenas descritas de maneira professoral para dar contexto. Os diálogos perdem a elegância construídos dessa forma e dificultam que soem naturais na boca dos atores.
Diga-se de passagem, o elenco é grande e recheado de grandes atores e atrizes. Destaque para o próprio Orciollo, que apesar de alguns over actings, teve competência para segurar um anti-herói difícil, além dos experientes Norival Rizzo (como FHC), Cássia Kis Magro (como a entrevistadora que confronta Gustavo Franco), Bemvindo Sequeira (como Itamar Franco) e Tato Gabus Mendes (muito bem como Pedro Malan). Novos nomes também apareceram como Paolla Oliveira, Mariana Lima, Guilherme Weber e Juliano Cazarré. No geral, as atuações tiveram um pouco de altos e baixos, mas foram boas.
Em certos momentos, notei uma forçada “novelização” desnecessária, como na sequência inicial do filme, e no caso de Paolla, que teve uma personagem fraca e monocromática (já que sua única função era dar dimensão ao protagonista) e que poderia estar em um folhetim das nove. Por conta dessas falhas, que poderiam ser corrigidas ainda no set, acho que a direção de Rodrigo ainda carece de algum amadurecimento, já que esse é só seu segundo longa, mas ela segue um estilo dinâmico que deu ao filme um arejamento de modernidade em relação ao cinema nacional. A boa trilha sonora, que ele mesmo escolheu, reforça seu estilo.
O destaque negativo fica pela fotografia pouco inspirada, que insiste em alternar planos e contra planos televisivos ou usar malabarismos sem função narrativa. Acho que é uma tendência do cinema nacional e eu não me toquei ainda. Enquanto isso, séries como “Felizes para sempre?“, de Fernando Meirelles, exploram o mesmo cenário, a cidade de Brasília, de maneira moderna, estética e narrativamente.
No montante, como obra narrativa, é um filme bom, que conta uma história coesa e está pouco acima do que tem sido apresentado no mercado brasileiro.
Mas tem um pequeno porém…
Mas agora chegamos em outro aspecto: o discurso político.
A proposta do filme tenta passar a visão neoliberal de Gustavo Franco e se pauta por ela. Dada a tendência da classe cultural brasileira de nunca abordar a história por esse ângulo, esse é um olhar diferente e necessário sobre um fato histórico. Esse é um dos principais objetivos do bom cinema: discutir e fazer pensar. Porém, mesmo que essa seja a ótica do personagem, o discurso do filme não pode cair no maniqueísmo do certo e errado. Toda discussão que quer ser levada a sério deve equilibrar os pontos de vista.
Nos momentos em que o filme aposta no ponto de vista do economista como herói, acaba por vilanizar seus opositores, destacando suas incoerências através de comparações com o momento atual, que apesar de reais, são muito pesadas em relação aos contrapontos que o filme coloca. O bom ator Juliano Cazarré, inclusive, pinta seu personagem em cores fortes para caricaturar um pouco seu papel de antagonista.
Em uma época como a nossa, em que a informação raramente é checada, e na atual situação política do país, onde não damos espaço para entender o ponto de vista do outro (como o péssimo exemplo do episódio recente do CinePE, que precisou ser adiado por causa de um boicote de cineastas), o contexto muda totalmente o valor do que é dito.
Por mais que o filme tenha sido feito para ser isento, a forma como ele se apresenta, não suscita a uma discussão ponderada por não se destacar desse contexto.
O bom cinema não toma partido. Ele apresenta as várias ideias e fomenta o debate.
Com certeza, vai agradar a quem concorda com seu ponto de vista e desagradar quem discorda. Isso, porém, um post no Facebook já faz. Uma obra cinematográfica precisa ser mais que isso.