O choque de realidades no filme Praça Paris
A carioca Lúcia Murat, diretora e roteirista de Praça Paris é uma veterana do cinema. Sua carreira, que contém vários documentários e longas como Quase dois Irmãos (2004), é extensa, mas nem sempre foi com uma câmera na mão. Ela foi uma guerrilheira no período militar. Talvez por isso ela consiga apresentar uma visão tão perturbadora de uma realidade da cidade onde nasceu: a vida no morro. Ou talvez porque ela é uma cineasta de muito talento.
No Brasil, o assunto das favelas pode ter sido saturado no cinema dos últimos anos, mas ainda pode ter algumas facetas interessantes a explorar, mesmo que não haja nenhuma novidade. Praça Paris, uma co produção entre Brasil, Argentina e Portugal, apresenta a história de duas mulheres que se conectam pela empatia. Gloria (Grace Passô) é uma ascensorista de uma universidade no Rio (onde essa atividade ainda é comum), onde trabalha Camila (Joana de Verona), uma psicóloga portuguesa. Quando a moradora do morro começa a se consultar com a psicóloga e seus universos começam a ser expostos e comparados, a jovem lusitana tem sua empatia colocada à prova pela dura e impactante realidade da paciente.
A imagem virginal da atriz portuguesa Joana de Verona é uma simbologia do bom e velho clichê do rico que sente que pode resolver os problemas do pobre sem, na realidade, conhecer a verdade de seu universo. Grace Passô é tão segura em sua atuação que é impossível não se apaixonar pela visão pragmática de sua personagem. Sua sabedoria vem da experiência direta e diária em um universo onde estupro, assassinatos, tráfico e tiroteios convivem com a busca do amor e a expiação da culpa. Uma inversão sutil entre quem seria mestre e quem seria aprendiz. A inocência do conhecimento teórico versus a sabedoria da experiência empírica.
O premiadíssimo filme de Lucia Murat, escrito em parceria com Raphael Montes, propõe um debate que não se cala sobre preconceito, mas que não cai na armadilha de ser tendencioso. Ao apresentar uma narrativa baseada em “causa e consequência”, somos levados a entender, sem procurar culpados, o quanto os universos que se tocam na simples consulta psicológica são antagônicos e separados por um vidro. As metáforas citadas, como as de animais de zoológico e do homem comendo uma jaca, são “tapas na cara”.
O título faz uma referência ao projeto do urbanista francês Alfred Agache, que reproduz uma típica praça parisiense em pleno aterro carioca. Essa alusão é uma forma de mostrar como Camila é uma ilha de beleza num mar revolto. Porém, essa beleza é idealizada e estrangeira ao universo real e cru que tem a violência diária como padrão. Esse choque é construído através de uma série de camadas que enriquecem a narrativa, ao mesmo tempo em que soterram os personagens.
A escalada, da empatia ao medo, da personagem de Joana em relação à invasão de seu espaço pelo mundo da ascensorista, em comparação à passividade de Glória diante da opressão do ambiente, mostra como o padrão estabelecido pela violência quebra a humanidade das pessoas. A cena da inspeção íntima, onde Grace é apresentada nua é, ao mesmo tempo, bela e inquietante.
Cinematografia e elenco em um conjunto conceitual coeso
A situação entre as duas mulheres lembra bastante a abordagem de David Chase em Família Soprano, onde Tony Soprano, um mafioso de Nova Jersey se consulta com a doutora Melfi, uma psiquiatra também de origem italiana. Nos dois casos, a realidade violenta começa a criar uma relação de desconfiança e preconceito nas profissionais que nublam seus juízos, criando medo e uma sensação de serem reféns da própria empatia.
Lúcia Murat consegue mostrar, através de suas escolhas cinematográficas, como os mundos são separados no início (o limpo e plastificado de Camila e o obscuro e orgânico de Glória) e se misturam (e se sujam) conforme a narrativa avança. Compare as cenas de sexo das duas personagens.
O filme, que tem um ótimo elenco, onde o mais conhecido é Babu Santana, de Tim Maia (2014), não apresenta nenhuma grande novidade técnica, mas a mixagem de som e a montagem ajudam bastante na narrativa.
Diferente de obras como Escritores da Liberdade (2007), onde uma pessoa de uma classe alta é um fator de transformação num universo onde não existe possibilidades, Praça Paris mostra justamente o contrário, pois apresenta o envenenamento do pensamento “bem intencionado e humano” pela realidade perturbadora do meio que os cerca. E assim o cinema brasileiro aprende a mostrar suas ideias de maneira inteligente.
(Aproveitando essa boa safra do cinema nacional, confira também a crítica de Aos Teus Olhos)