Produção americana dirigida por brasileira, Entrelinhas falha naquilo que pretende ser
Ter pretensões narrativas e artísticas muito acima do que se é capaz de realizar é um mal que atinge muitos cineastas. Embora esse problema possa afetar diretores experientes (às vezes, de forma recorrente), ele está mais vinculado a quem está iniciando na carreira. Por arrogância, presunção ou pura inexperiência, acreditam ter um domínio da linguagem cinematográfica que, na realidade, não têm. O filme Entrelinhas (The Unattainable Story), estreia na direção da brasileira radicada em Nova York Emilia Ferreira, pode ser um exemplo disso.
Exibido ano passado na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a trama inicia com um diretor de teatro refletindo sobre a noite estreia. Ele começa a analisar como conheceu a autora da peça, Jacqueline (Irina Björklund), e como foi o processo de montagem. Assim, Jacqueline passa a ser o centro da história. Ela é uma escritora que se arrisca pela primeira vez como dramaturga. A partir de suas inseguranças e sentimentos indefinidos, acompanhamos o desgaste de seus dois últimos relacionamentos, um deles com um ex-presidiário, e sua relação com o jovem diretor de teatro.
Essencialmente, o filme tenta fazer um paralelo entre a trama da peça e a vida da autora. Há nisso uma inversão de cunho feminista, porque a narrativa que está sendo elaborada para o palco trata da relação do compositor clássico Gustav Mahler com sua esposa Alma, quase 20 anos mais jovem. Ela, que também tinha aspirações de compor, precisou anular toda sua veia artística para se dedicar exclusivamente ao marido.
É essa força do machismo de tempos atrás que será subvertida na figura de Jacqueline, trazendo à tona conflitos em seus relacionamentos. De certa maneira, sua dedicação ao trabalho – e mesmo o relativo sucesso que alcança – torna-se um ponto de atrito para os homens com quem vive. Aparentemente, e de formas diferentes, esse protagonismo feminino gera incômodos sutis para o ego masculino de seus companheiros.
Sobre camadas, falta costura
A provocação e a reflexão por trás desse paralelo se mistura a questões a respeito da arte, da ficção e da não-ficção, da criatividade e também de sentimentos difusos sobre o estar no mundo. Toda essa multiplicidade de camadas e temas abordados exigiria uma direção consistente, que fosse capaz de costurar cada elemento. Não é o que acontece.
O entrelaçamento de tempos e de situações forma menos uma trama inteligível e mais uma cacofonia de sequências. Não há outro modo de dizer: narrativamente é um desastre. Em nenhuma de suas pretensões o filme alcança qualquer sucesso, deixando como rastro um emaranhado de diálogos ruins, situações pouco conexas e uma dramaturgia pobre. No seu desejo de ser profundo, complexo e sensível, é incapaz de estabelecer um conflito forte o bastante para manter o interesse do espectador. Tudo acaba diluído na montagem e nas atuações ruins de seus atores.
Da fotografia à trilha sonora, passando pelo ritmo, Entrelinhas remete a um filme produzido para a televisão, não para o cinema. Soa como aqueles telefilmes melodramáticos produzidos nos anos 80 e exibidos aqui em sessões do Supercine, a faixa de filmes de sábado à noite da Rede Globo. Não que esse tipo de produção televisiva seja necessariamente ruim – há muitos exemplos de grandes filmes feitos para a TV –, mas, em geral, o que se espera são tramas ralas, atuações canastronas e roteiros ordinários.
Embora carregue nobres e importantes questões femininas e feministas na sua proposta, algo cada vez mais discutido na cultura geral (O Estranho Que Nós Amamos é um exemplo recente), Entrelinhas falha em estabelecer uma dramaturgia nuançada e sofisticada como, claramente, pretendia. No lugar disso, é apenas confuso e monótono. Um caso clássico em que a simplicidade – e a humildade – seria uma opção muito melhor. Acabou no fosso das boas intenções desperdiçadas, como o nacional Fala Comigo.