Flávia Castro estreia na ficção com Deslembro, narrando as mudanças de uma adolescente no período pós-ditadura
(Deslembro tem estreia em circuito comercial prevista em 2019, mas está na 42º Mostra Internacional de Cinema)
Lembranças sombrias sobre o período da ditadura militar costumam fazer parte das memórias de quem já tinha idade para entender e lutar pelo país naqueles tempos. Mas será que quem ainda estava na infância não sentiu o medo que pairava no ar? A documentarista Flávia Castro faz sua estreia como diretora de ficção com Deslembro, filme inspirado nas suas experiências durante os primeiros anos da anistia no Brasil.
Após uma boa recepção no Festival de Veneza, o filme chega ao público brasileiro dentro da programação da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A protagonista do longa, Joana (a estreante e talentosa Jeanne Boudier), é uma adolescente que cresceu na França por conta do exílio de sua mãe, que era militante política e se viu obrigada a deixar o Brasil após o desaparecimento de seu marido (Jesuíta Barbosa, de Malasartes e o Duelo com a Morte).
Para a preocupação de seus meio-irmãos e do padrasto, a garota deixa aflorar toda a rebeldia típica da idade ao saber que terá que voltar ao Brasil. São os primeiros anos da anistia e também os primeiros momentos de transição de Joana, que, mesmo sabendo dos horrores sofridos pela família na ditadura e saudade da mesma da terra natal, não quer deixar os amigos e o país onde cresceu.
Flávia Castro já havia voltado seu olhar para os anos de chumbo em 2011 com Diário de Uma Busca, documentário onde investiga o misterioso desaparecimento de seu pai, o jornalista Celso Castro, encontrado morto anos depois dentro do apartamento de um ex-oficial nazista. Por mais que Deslembro referencie experiências vividas pela diretora no período de volta para o Brasil, o roteiro em nenhum momento peca para a emoção barata. Escrever sobre as próprias vivências é sempre um risco, mas Flávia parece ter encontrado um caminho equilibrado na hora de criar esta ficção mais que necessária para os nossos tempos.
Lembranças incertas
Escalar uma atriz inexperiente para protagonizar um filme que lida com temas complexo e ao mesmo tempo comuns à qualquer adolescente, é sempre uma aposta difícil. Jeanne Boudier tinha à seu favor o fato de ser francesa e, com isso, imprimir veracidade ao interpretar uma garota educada em outro idioma. A surpresa fica por conta de seu português perfeito e sua atuação sincera. Desde a primeira aparição, ela conquista a empatia do público, seja pelo rito de passagem doloroso que irá viver ou pelas dúvidas sobre a vida e a morte do pai.
O nome mais conhecido do elenco é Eliane Giardini, numa participação pequena, porém significativa, como Lucia, a avó paterna de Joana. Ela funciona como uma espécie de ponte com o passado, sempre disposta ao diálogo com a neta já cansada de indagar à mãe sobre o que aconteceu com seu pai. Lucia é o modelo de “mãe da ditadura”, que viu o filho sumir por querer um país com mais liberdade. Ela perdeu a fé em Deus, mas não na própria força, e segue em busca de respostas, mesmo tendo passado mais de uma década. Isso influencia Joana a insistir no jogo de puxar pela memória para tentar entender porque o sumiço do pai lhe causa tanto mal-estar, levando em conta que ela era uma criança quando tudo aconteceu.
A direção de arte de Deslembro, assinada por Ana Paula Cardoso, intercala tons opacos com muitas luzes e cores vivas, retratando a confusão interna de Joana diante de tantas novidades. A opção por não se prender apenas nas descobertas relacionadas à época da ditadura é certeira e garante a identificação por parte do espectador mais jovem. Os horrores da ditadura deixaram marcas na vida de Joana, mas não é só isso que irá garantir seu amadurecimento como mulher, filha e neta. O primeiro amor, o fortalecimento de sua relação com os irmãos e a compreensão da dificuldade da mãe em entender seus dilemas vão tornar a protagonista mais forte e mais ciente de sua posição no mundo.
Deslembro ainda injeta uma dose de poesia numa trama dramática por meio da trilha sonora. Composta por canções de Lou Reed, Caetano Veloso e The Doors, mais que embalar as descobertas de Joana, a seleção também faz lembrar que, mesmo nos anos mais difíceis de nossas vidas, há lugar para a arte para aliviar e nos fazer pensar sobre nossas dores. O poema de Fernando Pessoa que dá título ao filmes que o diga.