A Grande Muralha e seu roteiro ruim
Quando foi anunciado que Matt Damon (que esteve recentemente em Jason Bourne e produziu Manchester à Beira Mar) seria dirigido por Zhang Yimou, em um filme de ação que se passava na Grande Muralha da China, lembro de ter ficado empolgado. Afinal de contas, um astro hollywoodiano, que costuma acertar mais do que errar na escolha de seus projeto,s sendo comandado por um dos estetas mais interessantes a surgir nas últimas décadas era uma receita boa demais para ser ignorada. Porém, assim como aconteceu com Flores do Oriente (outro projeto do diretor com um astro hollywoodiano no papel, Christian Bale), A Grande Muralha (The Great Wall) é prejudicado por um roteiro ruim e uma timidez decepcionante de Yimou na direção.
Baseada numa lenda chinesa e se passando no século XIX, a história do filme é sobre uma raça de criaturas que em intervalos de 60 anos acorda para fazer os homens se arrependerem de sua ganância. Como o objetivo dessas criaturas é atacar a cidade, a Grande Muralha da China, protegida pela Ordem dos Sem Nome, serve como uma poderosa fortaleza de defesa.Enquanto os humanos se preparam para a guerra, William (Matt Damon) e Tovar (Pedro Pascal, da série Narcos), dois mercenários ocidentais em busca de um explosivo chamado Pó Negro, são aprisionados. Presenciando posteriormente a magnificência da batalha, eles terão de decidir se tentarão fugir ou lutar ao lado dos chineses.
O argumento inicial, concebido por Edward Zwick, Marshall Herskovitz e Max Brooks, foi transformado em roteiro por Carlo Bernard, Doug Miro e Tony Gilroy. Vendo essa lista quase infindável de nomes, é fácil descobrir a origem dos vários erros presentes no filme. Antes de tudo, seis mãos diferentes escrevendo uma história e um roteiro nunca é um bom sinal. Geralmente, é um indicativo de que o projeto teve de passar por um processo longo de melhoramento. Depois, quando as seis mãos pertencem aos nomes mencionados acima, a preocupação é duplicada, já que quase todos eles têm uma carreira com mais erros do que acertos.
Em primeiro lugar, a dupla Edward Zwick e Marshal Herskovitz, depois do fracasso de O Último Samurai, quiseram voltar a contar a história de um homem ocidental em conflito com os costumes orientais. Porém, estão presentes no filme a mesma pobreza temática e ignorância acerca de uma determinada cultura (no caso de A Grande Muralha, a cultura chinesa) que marcaram a produção de 2003. O que, aliado à presença de Max Brooks, cuja carreira como escritor consiste em episódios do Saturday Night Live e uma participação no texto de Guerra Mundial Z, constitui a típica narrativa sem conteúdo e repleta de momentos cômicos desnecessários. Mesmo que eles tenham apenas concebido o argumento inicial, o senso comum diz que a qualidade do fruto depende da qualidade da semente plantada, não é verdade?
E se a semente plantada já estava danificada, não será dessa árvore que virão bons frutos. Carlo Bernard e Doug Miro, os responsáveis por atrocidades como Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo e O Aprendiz de Feiticeiro, usam o já fraco ponto de partida para exibir mais uma vez toda a sua incompetência. Estabelecendo uma estrutura narrativa que deixa claro para o espectador que boa parte da duração do filme será preenchida com acontecimentos vazios de significado (como os seres humanos estão esperando o ataque final das criaturas, o segundo ato inteiro é composto por elementos supérfluos e descartáveis, como a morte de um personagem cuja ressonância emocional com o público é nula), os roteiristas ainda cometem o erro de trabalhar paralelamente uma subtrama comicamente inócua, envolvendo o personagem interpretado por Willem Dafoe, uma espécie de bobo da corte que não adiciona nada à narrativa (a cena final do personagem é deplorável).
Investindo também em diálogos expositivos (quase todas as falas do filme descrevem algo que o espectador está vendo através das imagens; isso sem falar na repetição cansativa dos diálogos que precisam ser traduzidos por alguns dos personagens para o restante das pessoas presentes no ambiente) que subestimam a inteligência do espectador, a dupla não consegue nem criar um arco dramático eficiente para o protagonista.
Como eles falham em estabelecer desde o início uma possível maldade em William (nos minutos iniciais, nós já o estamos admirando pela sua coragem), a jornada de redenção do personagem nunca soa edificante. Uma vez que todas as falhas de William são expostas verbalmente por Tevor (outro alívio cômico inócuo) e nunca mostradas, a impressão que temos é a de que o personagem caminha do ponto A ao ponto B sem ter realmente mudado de personalidade ao longo da trajetória.
Já o conflito entre as culturas Ocidental e Oriental recebe o infame tratamento reducionista tão comum em Hollywood nos últimos anos. Enquanto o Ocidente, para os roteiristas, pode ser facilmente reconhecido como ganancioso, materialista e egoísta, o Oriente é um território permeado de disciplina física, sentimento de lealdade e alta espiritualidade.
Como se essa visão não fosse pobre o suficiente (basta olhar para as histórias do Ocidente e Oriente para ver que as coisas nunca foram assim), Bernard e Miro fracassam imensamente na hora de passar para o público essas diferenças. Todas elas são expostas através de diálogos sentimentalistas ou momentos maniqueístas criados exclusivamente para a transmissão dessas distinções. Com essa quantidade absurda de erros na escrita do argumento inicial e roteiro, o que mais surpreende é a presença de Tony Gilroy na lista. Provavelmente, ele deve ter sido contratado para aparar as arestas do texto. No entanto, tudo era tão ruim que nem mesmo o talentoso roteirista poderia fazer algo a respeito.
Uma direção tímida e genérica de Zhang Yimou
Porém, como da fonte vazia não vem água, não é de se espantar que esses nomes tenham entregado um trabalho tão ruim. O que de fato surpreende é a direção tímida e genérica de Zhang Yimou. Se em Flores do Oriente, o cineasta já demonstrava um maior comedimento estético em comparação com outras obras de sua autoria (como Herói e O Clã das Adagas Voadoras, os seus dois filmes mais conhecidos), em A Grande Muralha o diretor não só anula o seu estilo característico, como parece querer imitar a direção genérica dos inúmeros blockbusters produzidos anualmente.
Seja no uso da câmera lenta (alguns objetos passam vagarosamente na frente da tela), seja no uso de CGI e 3D (esta última tecnologia é empregada quase que exclusivamente para atirar flechas na direção do espectador), a condução de Yimou é tão banal quanto a de um diretor sem muito talento realizando um de seus primeiros filmes. O único momento em que o apuro visual do diretor ganha vida é na belíssima cena do funeral, na qual vários balões preenchem o céu.
A parte técnica, por sua vez, é tão genérica quanto o resto. A fotografia, flertando com a sépia nas cenas do deserto e mais cinzenta e azulada nas cenas que se passam na Muralha, é óbvia (no final, há um momento de psicodelia, mas o instante é tão arbitrário que nem merece ser lembrado). A trilha sonora é derivada de trabalhos alheios (os sons dos tambores são os únicos memoráveis) e a montagem, por fim, investe nos cortes rápidos para dar urgência às cenas de batalha, um recurso usado em quase todos os filmes de ação hollywoodianos. O único elemento técnico que se sobressai é o figurino, fazendo das vestimentas dos soldados chineses um espetáculo visual colorido e vibrante.
Com uma performance atipicamente canastrona de Matt Damon e atuações ruins do restante do elenco (Pedro Pascal está particularmente ruim), A Grande Muralha passa a impressão de que está sendo deliberadamente mal feito, como se esse fosse o seu objetivo. No entanto, um filme pode querer ser muitas coisas, mas nunca ruim. E, se os realizadores se divertiram enquanto o estavam fazendo, o público dificilmente se divertirá assistindo ao resultado final.
Para aqueles que são fãs de Matt Damon ou de Zhang Yimou, a decepção será enorme. Eles não estão acostumados com um tropeço tão grande desses dois nomes.