O filme A Cabana e as crenças do público a quem se dirige
Uma daquelas peças que tratam de questões complexas com uma pretensa leveza que, na verdade, é inaplicável. Então, sobre o filme A Cabana (The Shack) vamos direto ao assunto: se Deus existe, e ele é absolutamente bom, onipotente, onisciente e onipresente, porque ele permite que o mal exista e porque ele não impede o nosso sofrimento? Filósofos, através da história, se debateram com essa questão. É uma pergunta tão antiga quanto a própria crença em Deus, que a obra de Stuart Hazeldine herda da obra original de William P. Young.
E aqui, logo de início, amigo leitor, nós precisamos fazer uma distinção – de um ponto de vista lógico e objetivo, essa pergunta pode sim, ser respondida, mas não é uma resposta que vai agradar àqueles que creem. Toda forma de crença se baseia, em algum ponto, em falácias ou argumentos circunstanciais para sustentar sua perpetuação. Ela não sobrevive, em nenhum aspecto, a um escrutínio racional e objetivo.
Mas o ponto também não deixa de ser esse: quem acredita, caga uma montanha para esses critérios. A crença se basta em si, e isso está bom demais. Pois é esse o espírito com o qual A Cabana tem que ser visto – é um filme para pessoas religiosas, que tem intimidade ou algum tipo de proximidade com o conceito de Deus – aqui apresentado de maneira mais holística e humanística, embora essencialmente cristão.
Desta feita, não discutiremos os méritos do argumento religioso. Apenas a obra em si. E aqui nós temos alguns problemas.
O material original não é bom. Novamente – não pelo tema tratado, mas porque Young é um escritor terrível. É um livro de nicho, feito para fãs do tema, que não pretende nem remotamente tentar conquistar um público mais amplo. É uma obra de puro proselitismo, que parece escrita às pressas – mais para expiar (ou compartilhar) algum tipo de angústia pessoal do autor, do que para construir uma obra de literatura.
E quando o material original não é grande coisa, fica difícil para quem adapta para o cinema criar algo que se possa chamar de “bom”. É preciso alguém muito habilidoso para superar as dificuldades impostas pelo material original. Hazeldine não foi esse cara. O filme A Cabana é um melodrama construído dentro de uma estrutura absolutamente previsível, estética e narrativamente, feita única e exclusivamente para fazer o espectador chorar.
Mack (Sam Worthington, de Até O Último Homem) é um pai de família que nunca soube o que era uma família antes começar a sua própria– seu pai era abusivo e batia na mãe, que nunca fez algo. Isso o tornou um homem duro e retraído. Até que conheceu sua esposa, e com ela teve três crianças. Com eles, formou uma daquelas famílias “Doriana”, tão perfeitas que chegam a parecer ficção científica de tão irreal.
A esposa, religiosa e piegas, mantém a família unida em um limbo de felicidade açucarada constante. Pois bem, no único momento em que ela sai de cena, uma desgraça acontece – morre a caçula Missy. Daí para frente, acabou a manteiga. E, quando a família está no ponto mais baixo do seu luto, um rancoroso e ainda mais retraído Mack recebe um convite de Deus para conversar no mesmo local onde Missy teria sido brutalmente assassinada. Então, ele iniciará uma jornada de redenção e expiação.
Parte técnica e elenco desperdiçados no meio do melodrama
A associação imediata que este pífio colunista fez ao término da sessão foi com um clássico da fase “balde de lágrimas” do falecido Robin Williams, Amor Além da Vida – e isso não é uma coisa boa. Mesmo a cinematografia é enjoativa – a fotografia, que emula um ambiente idílico e divino, tem cores constantemente estouradas, e os efeitos especiais simplesmente não são bons. Alguns cenários, como o da cena em que Mack encontra a Sabedoria (uma terrivelmente desperdiçada Alice Braga), são claramente artificiais – um tanto risíveis até.
Falando em Alice Braga, incidentalmente, o filme como um todo é um imenso desperdício de elenco. Sam Worthington parece constantemente perdido por não poder explodir – melodramas, que exigem expressões intensas, definitivamente não são seu forte. Mesmo os coadjuvantes, como Sumire Matsubara, atriz japonesa que interpreta o Espírito Santo, e Aviv Alush, que interpreta Jesus, demonstram ter habilidade e leveza para encarnar seus papéis – mas esbarram na breguice estética e nas terríveis limitações narrativas do texto.
O que nos leva a Octavia Spencer (do recente Estrelas Além do Tempo). Ela se esforça. E, em alguns momentos, até arranca alguma comoção genuína. Mas o seu Deus é tão parcamente construído que se torna previsível – quando o personagem é confrontado com as questões inevitáveis que esse tema sempre acaba tocando, o texto a faz sair pela tangente, assumindo que a crença em Deus do espectador vai bastar para compreender seus argumentos. Para quem não possui crença, é um personagem vazio e esquivo, que não estabelece claramente seu propósito.
A maneira como a trama se resolve, obviamente, é tão rasa quanto o resto do filme. A mensagem subjacente, do perdão, da misericórdia e da paz interior, são belas e até mesmo louváveis em termos gerais. Mas, tratando-se de uma obra fechada e finita, faltou muito para A Cabana nos convencer da jornada pela qual Mack passou.
Isso, associado ao fato de que o filme se dedica pesadamente a fazer o espectador chorar a qualquer custo – com recursos rasteiros como uma trilha sonora de tema leve, espaçada e harmonicamente quase toda em tons menores – faz com que o filme esteja na mesma prateleira de outras obras dessa categoria, como o já citado Amor Além da Vida, Marley e Eu e À Procura da Felicidade. É um fato que os espectadores que não gostam de usar, ou simplesmente não usam sua mente analítica durante um filme, serão absorvidos pelo melodrama. Isso não significa, em absoluto que o filme seja bom.
É muito provável quo filme A Cabana seja um sucesso para os seus próprios padrões. É uma trama banal, com atores carismáticos, uma mensagem edificante baseada em uma crença compartilhada por 90% do mundo ocidental, que não exige e ainda oferece uma certa catarse no seu final. É o tipo de coisa que doutrina facilmente o espectador a não esperar muito de seus filmes.
Só não faça muitas perguntas. William P. Young vai dizer-lhe que elas não são tão importantes quanto as respostas – o que quer que isso signifique.