A perspectiva do muçulmano em Fátima
A França já foi um dos países mais católicos não só da Europa, mas do Mundo inteiro. A sua tradição religiosa, aliada ao forte conservadorismo político, fizeram da nação uma das maiores representantes do catolicismo ao redor do globo. No entanto, a situação no país não é mais a mesma. Hoje em dia, além do forte liberalismo comportamental que tomou conta do continente, a imigração em massa de expatriados muçulmanos se tornou uma poderosa fonte de mudanças culturais. Mas nós, membros do Ocidente, nesse último ponto, sempre enxergamos a situação do ponto de vista descrito acima, tendo dificuldades em imaginar qual é a perspectiva do emigrante. Fátima (Idem) está aí para nos oferecer um vislumbre disso.
Dando nome ao filme, a protagonista (Soria Zeroual) é uma argelina que teve de sair do país em razão de uma violenta guerra que assolava a sua cidade natal. Morando na França, separada e mãe de duas meninas, Nesrine (Zita Hanrot) e Souad (Kenza Noah Aïche), ela ganha a vida trabalhando como faxineira e empregada doméstica. O seu único objetivo é fazer com que as filhas tenham a oportunidade de estudar e se tornar pessoas bem sucedidas. No entanto, ao passo que Nesrine, a filha mais velha, está estudando para se tornar médica, Souad, a mais nova, é rebelde e indiferente às dificuldades da vida.
Escrito e dirigido por Philippe Faucon (ele adaptou o roteiro a partir de um livro homônimo da própria Fatima Elayoubi), Fátima é um filme tão simples quanto a sua protagonista. Com iluminação natural, enquadramentos econômicos, trilha inteiramente diegética, atuações pouco teatrais e uma trama que se desenrola sobre situações comuns e corriqueiras do cotidiano, a obra é um retrato honesto do sentimento de não pertencimento que uma mulher muçulmana sente tanto na sociedade francesa – na qual ela encontra dificuldade de se inserir – quanto dentro do próprio seio familiar, uma vez que os conflitos que nascem a partir das diferenças de geração acentuam o abismo existente entre ela e as filhas.
Nesse primeiro ponto – o de se sentir uma estranha na sociedade francesa -, o filme, positivamente, não faz questão de reforçar a sua mensagem através de situações expositivas ou maniqueístas. Começando com uma cena em que a possibilidade de a protagonista ter sofrido algum tipo de preconceito por parte de uma mulher fica claro de uma maneira sutil (percebam o olhar trocado entre Fátima e a corretora de imóveis), o longa investirá em outros momentos tão sutis quanto a cena supracitada para fazer transparecer possíveis preconceitos, como a bonita cena em que uma das mulheres que empregam Fátima coloca notas de dinheiro numa calça para ver se ela as roubaria, ou até mesmo na profissão exercida pela protagonista, que parece aprisioná-la, nunca oferecendo a ela um destino mais rico de oportunidades.
Entretanto, é importante ressaltar que pintar um retrato da situação vivida por muçulmanos em nações ocidentais – no caso do filme, a França – não é o grande objetivo de Faucon em Fátima. Aliás, nesse sentido, como o filme já começa com uma cena que revela, através do olhar já mencionado e de um diálogo proferido pela protagonista, a possibilidade de que tenha sofrido preconceito, isso pode dar ao público a errônea sensação de que a obra se aprofundará nessa questão em particular, o que não acontece, pois o trabalho que o filme faz em cima do tema é extremamente sutil e inteiramente construído como pano de fundo, ou seja, como um cenário, ou contexto, composto para que à frente dele os dramas individuais das personagens principais surjam e sejam desenvolvidos.
Conflitos geracionais
Afinal, se há algo que muito interessa ao cineasta, a ponto de fazer com o que o seu filme gire em torno do assunto, é a alienação que Fátima sente por causa do conflito de geração entre ela e as suas filhas. Vestindo um véu – ao contrário de Nesrine e Souad – e mais presa às convenções comportamentais da cultura e religião da qual ela é membro integrante, Fátima é, por todas as definições, uma expatriada. Com dificuldades de falar francês e se adaptando apenas parcialmente às exigências do país e estilo de vida moderno, ela usa um diário para expor os seus sentimentos e visões de mundo (numa linguagem surpreendentemente poética), o que não deixa de refletir uma solidão que ela não compartilha com ninguém a não ser consigo mesma, através da escrita.
As filhas, por sua vez, têm personalidade que podem ser consideradas contrárias. Nesrine é a mais parecida com a mãe (essa similaridade e conexão entre as duas é bem trabalhada através de planos americanos que as enquadram em conjunto), embora já esteja numa universidade, namore um francês que não é muçulmano e se importe pouco com a cultura da qual advém. Com um tempo considerável em tela, os seus dramas, como a pressão exacerbada oriunda do curso de Medicina e a vontade de desistir que tem de ser preterida em razão do seu desejo de oferecer à mãe uma vida melhor, são bem trabalhados, o que, encarnados na forte interpretação de Zita Hanrot, dão ao um filme alguns de seus momentos mais poderosos.
Já Souad é uma adolescente típica dos tempos modernos. Rebelde, com problemas na escola, mas melancólica e solitária, ela se ressente dos esforços que a mãe tem de fazer para poder sustentar tanto ela quanto a irmã. Tendo uma relação mais maleável com o pai (há algumas cenas dedicadas à interação entre os dois), ela usa Fátima como um bode expiatório de tudo o que os seus olhos adolescentes enxergam como injustiçadas realizadas pelo Mundo. Porém, o filme, muito corretamente, enxerga nos seus atos, assim como em todo tipo de comportamento juvenil, aquilo que eles realmente são: uma maneira estabanada, por vezes estapafúrdia, que os jovens têm de estabelecer uma conexão emocional com os pais que lhe provêm tudo, desde amor incondicional até as necessidades materiais mais básicas.
Com uma atuação sólida de Soria Zeroual, Fátima é uma drama propositalmente modesto, porém serve como uma forma de revelar ao público ocidental um pouco dos pontos de vista, da vida e das perspectivas do povo muçulmano. Caso o assunto interesse ao leitor, recomendo que assista tanto ao filme de Philippe Faucon quanto obras recentes que também nos dão um vislumbre da questão, como O Apartamento e a minissérie The Night Of (tema de um Formiga na Tela). Afinal, entre muitas outras coisas, o Cinema pode ser uma maneira muito rica de conectar as pessoas dos lugares mais distantes do globo.