Tarantino abordando o Cinema por outro ângulo em Era Uma Vez… Em Hollywood
Ame ou odeie, Quentin Tarantino é um realizador que deixa todo mundo, no mínimo, curioso. Há tempos, anunciou que se aposentaria após completar seu décimo filme, alegando que cineastas pioram com a idade. É irônico que seu oitavo longa, Os Oito Odiados, quase sirva como argumento a favor desta declaração. Chegando à alegada penúltima obra de sua trajetória profissional, Era Uma Vez… Em Hollywood (Once Upon a Time… In Hollywood) mostra que o diretor ainda pode surpreender.
Mesmo assim, é necessário deixar algumas coisas claras para que ninguém se sinta enganado. A carga referencial que Tarantino empregou em sua filmografia, citando inúmeros outros filmes obscuros – ou não – de sua admiração, sempre se apresentou como bônus para uma fatia menor do público. Nunca houve a necessidade de identificar as homenagens do cineasta para entender ou curtir seus filmes, já que suas alusões e citações estavam restritas a, evidentemente, outros filmes. Aqui, a coisa é um pouco mais complicada, mas não necessariamente um demérito.
O nono filme de Quentin Tarantino, roteirizado por ele, como sempre, se ocupa de um recorte específico da história do Cinema. No final do período clássico de Hollywood, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um ator de seriados televisivos de Western, já em franca decadência e buscando uma transição para a tela grande, o que significava respeitabilidade. Seu dublê fixo, Cliff Booth (Brad Pitt), além de seu amigo, é seu faz-tudo, o que cria uma dependência profissional que não parece incomodá-lo, já que existe uma história nunca provada sobre ele que dificulta conseguir trabalho.
Neste universo, a dupla fictícia coexiste e interage com personagens da vida real, já que Dalton é vizinho de Roman Polanski e sua esposa sex symbol, Sharon Tate (Margot Robbie), estrela em ascensão. A polêmica em torno de Era Uma Vez… Em Hollywood já começou com o anúncio de que o caso Tate faria parte do roteiro. Para quem não sabe, a atriz foi brutalmente assassinada aos 26 anos, grávida, pelo culto liderado por Charles Manson, em 09 de agosto de 1969.
A jornada de Dalton e Booth é alternada com momentos da rotina de Sharon Tate, o que cria um contraste interessante, narrativamente falando. O diretor utiliza a personificação de Margot Robbie como uma figura imaculada, logo deixando claras suas intenções. Para os cinéfilos mais dedicados, pelo menos, pois já encontramos essas indicações no próprio título. Quem lembra bem de Era Uma Vez No Oeste sabe que o filme de Sergio Leone lançava um olhar crepuscular ao gênero, com um final que indica uma transição em curso. Em 1969, também havia uma virada surpreendente acontecendo em Hollywood.
Alusões aos dois lados da câmera
A verdade é que pessoas alheias ao que significa Nova Hollywood podem patinar na interpretação aqui, pois Tarantino faz suas famosas referências e alusões aos dois lados da câmera. Na época do recorte escolhido pelo roteiro, a velha indústria abria caminho para mais de uma década de filmes bem diferentes em termos de modelo de produção e temática. Não apenas isso, o filme também se ocupa de comentar outro contexto específico real daquela época, que é a TV menos valorizada em relação à tela grande. Esses bastidores, inclusive, rendem uma interação divertidíssima entre o personagem de Brad Pitt e Bruce Lee, no intervalo de filmagem de O Besouro Verde.
A escalada profissional de Dalton também rende outras citações sobre atores norte-americanos se aventurando em produções italianas, algo que provoca sorrisos nos iniciados e parece sem propósito aos menos informados. Mesmo assim, sem fugir ao seu modus operandi de cinéfilo nerd, o diretor também cita outros longas em cenas específicas, mas, na maioria das vezes, esses trechos aparecem como filmes dentro de seu próprio filme, mostrando o caminho tomado pela carreira de Rick Dalton.
Neste sentido, com Era Uma Vez… Em Hollywood, Quentin Tarantino extrapolou sua obsessão pelo Cinema de uma forma bastante divertida, por sinal. Com a ironia de sempre, ele investiga as agruras comuns a vários atores naquele final de década, mostra um respeito quase devocional ao trabalho anônimo dos dublês e louva a figura de Sharon Tate. Porém, também teve a sacada inteligentíssima de, desta vez, encaixar suas referências e homenagens dentro do ambiente diegético do filme. É de se pensar o que ele poderia fazer de mais interessante em seu próximo e, supostamente, último filme.
Atuações e parte técnica criando uma experiência prazerosa
Com o carisma de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt na linha de frente e Margot Robbie dominando a câmera quando aparece, o longa já tem uma enorme vantagem. São talentos insuspeitos, mas isso pouco adiantaria se o texto não investisse em uma dinâmica interessante. A relação entre os dois primeiros brinca com a percepção do público sobre as celebridades, em confronto com o cotidiano real.
A insegurança de Dalton corria o risco de cair para a caricatura, por conta do teor ora jocoso do roteiro, mas DiCaprio se segura firme em sua composição. O desafio de interpretar um ator, quando o intérprete precisa desdobrar sua persona em tela, foi vencido, somando mais um acerto nesta carreira. Já Brad Pitt não precisou de tanto esforço para viver Cliff Booth, personagem estiloso e cheio de mistério que nubla os limites entre a realidade e o exagero dos filmes. Ainda assim, o ator contribui para torna-lo ainda mais interessante.
A esplendorosa personificação de Margot Robbie como Sharon Tate completa o alicerce da produção, dando origem a algo que é muito mais do que a soma das partes envolvidas. Suas aparições são quase como um interlúdio da linha narrativa principal, fazendo questão de mostrar dois lados de uma Hollywood que, em muito pouco tempo, se transformará em outra coisa. A atriz carregou uma responsabilidade e tanto, já que o texto coloca um peso conceitual enorme nesta figura, até provocando alguma tensão no público que sabe o que aconteceu com ela.
Como não poderia deixar de ser, o cuidado com o visual salta aos olhos. A reconstituição de época é um colírio na tela e Tarantino sabe como valorizar isso com a câmera. Utilizando uma paleta de cores mais quentes, ele brinda a plateia com enquadramentos quase reverentes a esse mundo e essa época, alternando esse uso de luz/cor quando é necessário quebrar o clima e a expectativa. Muito disso é mérito do veterano diretor de fotografia Robert Richardson, que trabalha com ele desde Kill Bill. Como não poderia deixar de ser, a trilha sonora, recheada de canções da época, completa o pacote.
Uma realização que mira um público bem menor
Como profissional prestigiado, Quentin Tarantino sabe que não precisa preocupar-se em agradar a todos. É isso que transparece em Era Uma Vez… Em Hollywood, que, com sua metalinguagem elevada a outro patamar, não dialoga com a esmagadora maioria do público. Uma vez que ele faz essa opção consciente, pode ser julgado em vários parâmetros, mas não ter sua competência questionada.
Com 161 minutos bem dosados, provavelmente, o final é o trecho que criará discussões acaloradas entre apaixonados e detratores. De fato, se existe algum excesso ou deslize em toda essa construção, ela está exatamente na forma em que ele costura seu ato final. Fica a impressão de que ele mesmo se impôs a não afastar-se demais de algo que seus próprios fãs já esperam, mas isso também deve ser posto em discussão. Com tanto conteúdo, o prazer da sessão se estende muito, já que é inevitável pensar no filme, elaborar raciocínios e conversar com outras pessoas.
Era Uma Vez… Em Hollywood não deve ser comparado com obras como Crepúsculo dos Deuses, que discutiram o Cinema muito antes, mas sua proposta acolhe, de alguma forma, as pessoas que compartilham da afeição que o diretor/roteirista tem pela Sétima Arte. Exatamente por isso, seria uma despedida digna se fosse este o último filme de Tarantino.
Alguns podem usar os termos “nostálgico” e “auto referencial” como defeitos. No entanto, é provável que essa reação se explique por algumas dessas pessoas sentirem-se excluídas do público-alvo do filme.