O retrato feminino no filme Dégradé
Uma das maiores dificuldades para qualquer realizador é representar o universo de um gênero ou etnia do qual ele não faz parte. Por vezes, isso gera resultados catastróficos* como em Histórias Cruzadas (2011), baseado no livro homônimo de Kathryn Stockett, e dirigido por Tate Taylor, ambos brancos, onde um grupo de mulheres negras que sofrem abusos, racismo e repressão é ajudada por uma linda garota branca. Mas também pode render obras fantásticas, como Tudo Sobre Minha Mãe (1999), de Almodovar, ou Uma Mulher Descasada (1978), de Paul Mazursky, que trazem mulheres e seus universos particulares. No filme Dégradé (idem), os diretores buscam a intimidade de mulheres palestinas, retratando sem elipses de tempo um salão de beleza que logo começa a sofrer as consequências por estar inserido numa região tão conflituosa. O resultado fica no meio caminho quanto aos exemplos apresentados.
*(O recente A Promessa, de uma forma ou de outra, também se enquadra nesta categoria)
Co-produção palestina com França e Qatar, presente na mostra competitiva de Cannes em 2015, o filme nos apresenta um leque de personagens diferentes com alguns problemas e dilemas particulares. Pela janela do estabelecimento, observamos a rua e o prédio a frente, onde vamos homens armados e garotos jogando futebol, o que estabelece a primeira metáfora do filme: homens livres do lado de fora, mulheres submissas confinadas dentro. A ligação entre esses dois mundos é Wedad, funcionária do salão, que namora Ahmed (interpretado pelo co-diretor, Tarzan Nasser, que assina a produção com o irmão Arab) sem que a família saiba. Ahmed é tido como bandido pela comunidade e exibe um leão que roubou do zoológico local. O roubo do animal é o que inicia um conflito primordial para a trama, que acompanhamos quase totalmente pelo extraquadro, e ocasionalmente quando alguma personagem olha pela janela.
Os diálogos soam quase sempre naturais, abordando diversos elementos e problemas enfrentados pelos palestinos, mais especificamente pelas mulheres. Algumas personagens têm pouca importância na trama, funcionando mais para a elaboração de analogias. Por exemplo, uma mulher em estágio avançado de gestação que entra no salão e a qualquer momento pode ter sérias complicações, assim como a situação dos palestinos em seus assentamentos sempre ameaçados por Israel. Também temos a filha da dona do salão, que representa uma grande preocupação para sua mãe ao querer ir para rua se aproximar do leão, como tantos jovens muçulmanos que acabam seduzidos por perigosas organizações infiltradas na comunidade.
Aspectos técnicos a serviço da narrativa
A fotografia é toda realizada com câmera na mão, reforçando a instabilidade daqueles personagens, mesmo numa situação trivial que seria a ida a um salão de cabeleireiro. A profundidade de campo reduzida empregada na maior parte dos planos realça a sensação de aprisionamento das personagens dentro do salão, enquanto mostra a proximidade destas mulheres que dividem problemas e conflitos semelhantes, como racionamento de energia em suas residências, submissão aos homens e necessidade de serem aceitas pela família dos maridos.
O desenho de som desempenha um papel primordial na obra, haja visto o que acontece fora do salão. Tem papel determinante no alcance da tensão provocada nos personagens e soa extremamente realista, exceção feita a poucos momentos onde o abrupto e longínquo silêncio denota um “cessar fogo”, enquanto as personagens agem como se bombas e tiros fossem disparados, os quais parecem ter sido equívocos técnicos.
Embora o filme discuta questões importantes, nunca alcança o âmago da intimidade das personagens retratadas, mesmo que a câmera nos coloque dentro do salão a visão retratada é a de alguém de fora. Tal fato se deve à falta de sensibilidade dos diretores para com o particular universo feminino. Há grande dificuldade em retratar em sua plenitude um universo de gênero diferente dos diretores, que – como discutido no primeiro parágrafo – é um dos maiores desafios de todo realizador.
Terminando com uma bela metáfora que compara o povo palestino a um leão, Dégradé, embora não se aprofunde muito em nenhum dos assuntos abordados, traz um satisfatório estudo de personagens e a compreensão de como a vida é difícil para aquelas mulheres.