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Capitão Fantástico – Uma crítica dura, mas necessária!

Capitão Fantástico

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Ok, primeiro, vamos falar sobre o elefante na sala. Ou urso, que talvez seja algo mais próximo a rotina da família de Ben Cash em Capitão Fantástico (Captain Fantastic). O diretor/roteirista Matt Ross jura de pés juntos que sua inspiração para o filme foi absolutamente espontânea e qualquer tipo de apropriação criativa do nono álbum de Elton John, Captain Fantastic and the Brown Dirty Cowboy, foi estritamente subconsciente e acidental. Sendo ou não sendo – embora, se o amigo leitor tiver curiosidade, procure a letra da música título após assistir ao filme e veja as “coincidências” – o fato é que ele não poderia ter se inspirado de forma melhor. Mais precisamente, quando o estilo de vida alternativo escolhido pelo personagem de Viggo Mortesen para sua família começa a ruir, quando colocado em rota de colisão contra aquilo que ele entende ser a sufocante realidade da vida contemporânea urbana, surgem em nossa mente com clareza os versos dessa canção, conforme o protagonista do filme passa a se questionar da mesma forma que a voz que narra a música.

O filme começa com Bodevan (George MacKay), um dos seis filhos de Ben, encontrando e matando a sangue frio um cervo. Ao que seu pai, em uma espécie de ritual de passagem, anuncia, diante dos outros filhos, todos mais novos (dois deles totalmente infantes) que agora ele é um homem – com o animal morto servindo de cenário para o ato, em frente a essas crianças. Uma cena que facilmente incomoda a sensibilidade civilizada da audiência. Essa é uma escolha interessante para se começar um filme desses. A ideia de um homem que concretizou seu plano de fugir com a família para dentro da natureza e encontrou paz e tranquilidade, rejeitando a loucura física e mentalmente doentia do mundo contemporâneo, pode ter um imenso apelo para que vive no olho desse furacão – como nós, paulistanos, por exemplo.

Entretanto, Ross opta por uma apresentação pragmática – abandonar os hábitos do mundo urbano significa abandonar a tudo mesmo ­– aí inclusos os confortos que também o caracterizam. A escolha por viver em meio a natureza representa também a brutal escolha que significa permanecer uma pessoa civilizada em um ambiente incivilizado – ou seja, viver na natureza não significa apenas “em meio” a ela, mas também “sobreviver” a ela. Dessa forma, Ben encarna uma espécie de versão de “À Prova de Tudo no Jardim de Infância” – seus filhos são treinados na rotina de atletas profissionais, capazes de se defender com armas e usar os recursos da floresta a seu favor. Só que também são intelectuais civilizados, que leem Dostoievsky e discutem Chomsky – uma das primeiras cenas da família os mostra em uma roda de fogueira casual, com os adolescentes lendo livros de física e ética de alto nível, enquanto Ben faz breves chamadas orais para ver se os pequenos estão conseguindo acompanhar suas respectivas leituras. Você nunca mais vai reclamar da sua antiga escola.

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Mas o fato é que, como já pontuamos, o filme faz questão de nos demonstrar desde o início que não existe nenhum caráter de idílio aqui. Da mesma forma que o espectador fica rapidamente chocado com a austeridade imposta por Ben aos seus filhos – mesmo que esses não a sintam tanto assim, muito por desconhecerem a realidade fora dali – eles próprios questionam seu pai desde o início. De forma tímida no começo do filme, que vai se acentuando conforme a narrativa avança, Bodevan, com seu sonho de ir à faculdade e Rellian (Nicholas Hamilton), desejando viver como outros garotos “normais” de sua idade, são os que acabam protestando de forma mais acentuada por querer, ao menos, experimentar daquilo que seus pais conscientemente rejeitaram – liberdade que nunca foi dada a eles.

Fato é que, em determinados momentos, o conflito é muito claro – Ben e sua esposa queriam reproduzir, como alegam nominalmente no filme, A República de Platão em meio a floresta. Mas com toda sua inteligência, Ben parece ter deixado passar, deliberadamente, uma das maiores críticas que se faz ao texto do grego do século XX para cá: a tal sofocracia dos reis-filósofos de Platão é, essencialmente, um estado fascista, que tira as crianças de seu ambiente familiar para doutriná-las e serem testadas para executar determinadas tarefas quando adultas. No mínimo, uma ironia para quem celebra o aniversário do libertário Noam Chomsky como feriado familiar. Talvez Ben devesse se preocupar menos com física e treinamento de combate, por exemplo, e estudar um pouco mais de filosofia.

Apesar de tudo o que foi dito, Ben não é um vilão e se preocupa, acima de tudo, com o bem-estar dos seus filhos. E essa obra, que até então parecia apenas um trabalho de Ross para chutar um cachorro morto hippie, se desdobra em algo mais delicado e profundo. Descobre-se que Ben e sua esposa Leslie (Trin Miller) tiveram um excelente motivo para fugir do caos urbano e, dado o falecimento da mesma, o retorno às pressas de Ben para realizar o funeral segundo os últimos desejos de sua amada, e a maneira forçada como terá que apresentar o resto do mundo para os seus filhos, impõe um desafio para o qual ele talvez não estivesse preparado. É difícil não ver aqui uma singela metáfora para a paternidade – não importa o quão bem você eduque suas crianças, no fundo, você não sabe de tudo e, portanto, não pode protegê-los ou prepará-los para tudo.

Conforme o filme assume sua faceta de road movie, também vem o estranhamento e o inevitável choque entre culturas – momento em que Ross sutilmente abandona suas críticas e questionamentos à espartana vida da família Cash, e passa a voltar suas armas narrativas contra seus exatos opostos: nós. Do susto levado pelas crianças ao ver pela primeira vez pessoas obesas (que rende um divertido chiste), a estranheza de não entender porque seus primos – adolescentes alienados tipicamente suburbanos – tem uma compreensão completamente diferente da palavra “Nike” – que, na mitologia grega, é a deusa da vitória que acompanha a deusa Atena. E perceba, amigo leitor, que se você sabia de tratar de uma marca de tênis, mas não da sua origem mitológica de seu nome, o ponto das crianças – e, por consequência, de Ben – está provado. Capitão Fantástico tem seu jeito peculiar de ser um soco na boca do estômago; mas com luva de pelica.

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E é nesse ponto em que realmente podemos passar a nos questionar: Ben é um bom pai, ou um mau pai? Para além das escolhas que podemos considerar questionáveis ou àquelas com as quais podemos nos identificar; ou, mais ainda, àquelas que guardamos secretamente em nosso pequeno baú de desejos, e que jamais teríamos coragem de revelar para o mundo exterior, o fato é que Ross e Mortensen constroem um personagem multidimensional, que pode refletir diversas de nossas facetas, dependendo do ângulo pelo qual se olha. Não se trata de um herói lutando contra a opressão do mundo ou de um pequeno tirano cerceando a liberdade de inocentes – trata-se de um homem que encara o mundo de frente, fazendo escolhas como qualquer um de nós. O arco dramático esconde grandes questões sob pequenos detalhes – o debate sobre Lolita, por exemplo, é muito mais rico em sua analogia do que pode parecer.

Não bastasse essa belíssima narrativa com um fantástico elenco – nenhuma das crianças decepciona, e os avós ainda apresentam os incríveis Frank Langella e Ann Dowd – a cinematografia também é digna de admiração. A fotografia se adapta aos diferentes ambientes e propostas no decorrer do filme, com efeitos sonoros que proporcionam uma imersão cuidadosa, tanto nos momentos de contemplação quanto nos momentos de caos.

Capitão Fantástico é um dos melhores filmes do ano, mesmo que venha a passar desapercebido pelo grande público. Pela similaridade de propostas – embora particularmente melhor executado no geral – ele tem grandes chances de superar Na Natureza Selvagem como grande clássico da contracultura recente entre os adeptos do escapismo. Lembrando que não é um filme dirigido apenas a esse público – simplesmente virar as costas para os questionamentos e críticas feitas por ele à nossa sociedade é uma profunda demonstração de ignorância. Ou de deliberada alienação.

Apesar do nome, pode não se tratar de um super-herói, mas ele certamente quer nos ajudar.

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