Até o Último Homem é uma reafirmação de talento
Quem não curte testemunhar um retorno triunfal? A não ser que você odeie a figura que estiver dando a volta por cima em questão, é claro, e deve haver um monte de gente que gostaria de ver Mel Gibson pelas costas. Não que faltem motivos em virtude do comportamento e declarações antigas do ator/diretor, mas se você não se inclui entre essas pessoas e já sabia do que ele era capaz comandando um longa, tem um bom motivo para conferir este seu trabalho do outro lado das câmeras. Longe da função desde Apocalypto, de 2006, o australiano vence agora uma batalha difícil, recuperando seu prestígio como realizador com Até o Último Homem (Hacksaw Ridge).
É surpreendente que, após dar as caras recentemente em filmes como Os Mercenários 3 e Herança de Sangue, Gibson tenha se aventurado na direção de uma história que exige tanta sensibilidade para evitar a patriotada vazia. Em se tratando de algo baseado em fatos e ambientado na Segunda Guerra, o risco era grande. Desmond Doss, nascido e criado no Estado de Virginia, serviu como voluntário em uma companhia de infantaria destacada para Okinawa, que o(a) leitor(a) já deve saber que foi um banho de sangue e que os japoneses deram muito trabalho aos Aliados, caso tenha a mínima familiaridade com o assunto.
A curiosidade em torno da história real é que as crenças de Doss, como adventista, o fizeram optar pelo serviço médico, mas recusando-se a sequer tocar em uma arma, mesmo durante a instrução. Era inevitável a hostilidade entre os colegas e a pressão do comando, mas ele conseguiu ir ao campo de batalha sob suas próprias condições. Qualquer pesquisa básica pela internet pode revelar qual foi o destino dele, então vamos às qualidades do filme, que não são poucas.
O roteiro linear de Robert Schenkkan e Andrew Knight, com mais experiência na TV, nos mostra o protagonista criança, construindo bem as bases de suas convicções. Ao mesmo tempo, o texto faz uma bela rima dos pequenos montes escalados com o irmão durante a infância com aquele que será sua verdadeira provação quando adulto. Aliás, a estrutura geral desta história, apesar de simples, tem uma lógica conceitual bem pensada, pois o sentido religioso impresso na jornada do personagem principal completa-se em uma elipse que, claramente, não está ali por acaso.
Guerra é guerra!
Essa lógica é complementada pelas ótimas soluções visuais da fotografia de Simon Duggan, que traduz muito bem a diferença entre o mundo seguro e bucólico dos campos da Virginia, o campo de treinamento militar e, finalmente, o inferno em Okinawa. Ao encerrar o primeiro ato de Até o Último Homem demonstrando segurança narrativa, Mel Gibson traz a guerra ao espectador, em uma sequência que desnorteia a plateia pela verossimilhança dos corpos despedaçados por bombas e balas.
Facilmente, o público vai lembrar-se de outro primor técnico na reconstituição de um campo de batalha: O Resgate do Soldado Ryan. O frenesi da urgência e do desespero em meio às balas e explosões é visível, sem que o diretor se perca na decupagem complexa deste tipo de cena. Compartilhamos não apenas a adrenalina dos soldados em clara desvantagem, mas também o medo e a tensão em momentos furtivos, onde Até o Último Homem consegue ser mais eficiente que a maioria dos filmes de terror que infestam as telas ano a ano.
Isso já bastaria para destacar o filme e tirar Mel Gibson do ostracismo, mas ainda há mais méritos. Desmond Doss é interpretado por um Andrew Garfield impecável em todos os sentidos, seja na postura corporal, no olhar ou no sotaque. A performance do ator é imprescindível para fazer até o espectador menos religioso admirar a força de vontade do protagonista, ganhando um suporte de peso na figura do pai atormentado e ambíguo, vivido por um não menos inspirado Hugo Weaving.
O restante do elenco cumpre bem sua parte, mesmo com nomes como Teresa Palmer, do fraco Quando as Luzes se Apagam, interpretando Dorothy, que apoia o amado em sua jornada e aguarda seu retorno, ou um improvável Vince Vaughn como o sargento da instrução. Vaughn, aliás, se mostra uma escolha esperta para os alívios cômicos nos momentos esperados do treinamento, mas, ao nos acostumarmos com sua presença, ele acaba não destoando quando vai ao campo de batalha, evitando que o público se lembre de um Penetras Bons de Bico, por exemplo.
Chegando ao final, Mel Gibson sabe o que fazer com a fotografia de Simon Duggan e fecha seu raciocínio visual de uma maneira notável. Até o Último Homem peca apenas por ceder a alguns clichês básicos de filmes de guerra, mas isso arranha muito pouco o resultado final. Absolutamente bem executado em termos técnicos, com todas as partes em harmonia, e contando com um elenco afinadíssimo, só podemos encerrar dizendo:
Bem vindo de volta, Mel!