O Assassinato no Expresso do Oriente de 2017 se mostra tão competente quanto a de 1974
O detetive belga Hercule Poirot é um dos mais famosos e idolatrados da literatura policial. A criação da escritora Agatha Christie criou legiões de fãs e protagonizou várias histórias, como Morte no Nilo, O Caso dos Dez Negrinhos e Os Cincos Porquinhos. Um dos livros mais famosos com Poirot é Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on The Orient Express), escrito em 1934. Foi adaptado em 1974, dirigido por Sidney Lumet, com Albert Finney interpretando o detetive. Em 2001, ganhou um filme para TV, com Alfred Molina como protagonista. Claro que os produtores de hoje trariam de volta o personagem para as novas gerações. O novo interprete do detetive é o grande ator Kenneth Branagh (de Dunkirk), que também assina a direção da nova versão homônima. Muito bem feita, aliás.
(Confira nosso Formiga na Cabine sobre o filme)
Para quem não sabe, a história mostra Poirot, já um detetive de renome internacional, retornando para Paris após a resolução de um caso. Do Cairo, ele embarca no luxuoso Expresso do Oriente esperando um período tranquilo. Ele só não desconfia que não terá esse descanso, já que o antipático Ratchett (Johnny Depp) é assassinado durante uma noite. O que parece um caso simples vai se complicando cada vez mais, pois todos os passageiros do vagão são suspeitos e todos têm alguma ligação com a vitima.
O que vale destacar no roteiro de Michael Green (de Logan e Blade Runner 2049) é que o mistério do filme não está em primeiro plano, mas sim os personagens, principalmente Poirot. O belga está em todas as cenas do filme e vamos percebendo junto com ele que a resolução do caso é muito mais complexa que aparenta. A riqueza do personagem constrói-se nos detalhes. É exigente, gosta de comer e vestir-se bem. Apesar da lógica, possui suas excentricidades. Aparenta frieza, mas tem um amor escondido. São pequenas características que o deixam mais humano, o que não ocorria no filme de Lumet, onde era uma figura mais caricata e mais lógica.
O texto é muito funcional no mistério. Além de entendermos todo o raciocínio de Poirot, ficamos tão surpresos quanto ele a cada resposta que aparece. Mas nem tudo são flores neste roteiro, que sofre de problemas como excesso de piadinhas e alguns diálogos expositivos demais. Há de se perdoar, pois isso se deve ao fato dessa versão procurar o grande publico, com elementos se tornaram padrões para o cinema moderno. Assim como as sequencias de “ação”, que têm em alguns momentos que quebram o ritmo e a atmosfera. Também é o caso do monólogo final de Poirot, que acaba soando moralista demais. De qualquer forma, mostra um bom amadurecimento da parte de Green.
Classicismo: Filmando na velha forma
O que chama atenção em Assassinato no Expresso do Oriente é a elegância da direção de Kenneth Branagh. É uma trabalho que, mesmo com elementos modernos (como o uso do CGI), possui um cuidado enorme na composição dos quadros no uso do espaço restrito. Lembra diretores mais clássicos, como Hitchcock, que já era uma referência no filme de Lumet. Além dessa inteligência e sofisticação na composição dos planos, vemos o quanto o diretor realmente compreende a linguagem cinematográfica.
Um exemplo perfeito é a cena em que Poirot embarca no trem. É um longo plano-sequência que segue o detetive da estação até o vagão, mostrando-o pela janela e interagindo com todos os personagens, que são mostrados distorcidos pelo vidro, já indicando sua natureza. Ou seja, ao invés de recorrer a diálogos, Branagh já nos mostrou muita coisa apenas com o movimento da câmera. Poirot está entrando em um microcosmo onde todos à sua volta têm algo duvidoso. Como a maioria dos trabalhos de direção de Kenneth Branagh, ele faz questão de ser o mais eclético possível, mostrando toques diferentes dos que vimos em Thor, Operação Sombra: Jack Ryan ou Cinderela. É um belíssimo trabalho na direção.
Outros fatores técnicos também chamam a atenção, sendo o principal a direção de arte e figurino, deixando o tom mais sombrio e ameaçador que o da outra versão. É criada uma atmosfera mais misteriosa, principalmente sobre os perfis dos personagens. A fotografia de Haris Zambarloukos – um colaborador frequente de Branagh – é eficiente na criação no clima, usando uma paleta de cores mais melancólicas e sombras. Em alguns momentos se torna óbvia, como no momento que o rosto de Poirot brilha após descobrir uma nova resposta para o caso, mas é perdoável. Para completar, uma bela trilha sonora romântica feita por outro colaborador do diretor: Patrick Doyle. Mesmo vindo de alguns trabalhos pouco memoráveis, a música de Assassinato no Expresso do Oriente é linda por mostrar a natureza triste e terrível por trás do crime.
Acredito que o assunto que mais gera curiosidade seja o elenco, já que é dado um grande destaque ao casting magnífico. Alem dos já citados Kenneth Branagh e Johnny Depp, outros nomes são Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Judi Dench, Willem Dafoe, Daisy Ridley e Derek Jacobi. A nova versão, como na de 1974, também justifica o forte investimento nos atores. São personagens de características especificas, precisando de intérpretes com uma presença forte e que causem uma impressão evidente à primeira vista. Todos tem ótima dinâmica e química, destacando Depp e Daisy Ridley, que tem mais cenas com Branagh e se segura muito bem contracenando com um ator técnico e muito mais experiente.
Se a direção de Kenneth Branagh já se mostra acertada, sua atuação como Hercule Poirot é excelente. Sua composição é mais humana que a de Finney, que já estava longe de ser ruim. É um personagem que cairia facilmente na caricatura por conta da suas excentricidades e de algumas características como o sotaque, a arrogância e a vaidade. Isso, obviamente, sem contar o bigode, que é sua principal marca. Mas o ator não só consegue balancear muito bem tudo isso, como também mostra destreza dramática e sutileza, deixando sua versão muito mais carismática. Perceba como a câmera não consegue sair de Poirot e como acabamos realmente torcendo para que ela não saia, por conta do trabalho riquíssimo de atuação. Branagh se mostra perfeito para o papel. Trabalho ótimo nos dois lados da câmera.
Assassinato no Expresso do Oriente não é só um suspense muito acima da média. É um trabalho muito maduro, mostrando que a modernidade pode andar de mãos dadas com as técnicas clássicas do cinema. Sinceramente, espero que o Poirot de Kenneth Branagh possa resolver mais mistérios em breve.