Aquarius – Muito além da polêmica
Aquarius é um filme infinitamente maior do que a polêmica a que foi submetido. Em momentos tensos de qualquer nação, a classe artística sempre reagiu à altura e é seu dever assim o fazer. No entanto, soma-se o jornalismo torpe com o desprezo pela arte e veremos uma obra-prima como essa ser sublimada, não pela situação presente, mas justamente pela essência que o país possui.
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A história se passa no Recife dos dias atuais. Clara (Sônia Braga) é uma jornalista aposentada, viúva, mãe de três filhos, que habita um dos apartamentos do Aquarius, um prédio antigo na Avenida Boa Viagem. Uma construtora compra todos os apartamentos a fim de executar um mega projeto imobiliário. No entanto, Clara é a única a não vender o seu, resistindo às investidas da empresa para que ela saia do local.
Em Aquarius, mais do que um retrato do Brasil, o diretor Kleber Mendonça Filho constrói um mosaico de nossa condição histórica. Tradição, modernidade, cultura, alienação, civilização e barbárie são elementos que se entrelaçam com o cotidiano de uma mulher sexagenária, cuja única intenção é ter o direito de estar no seu lugar e, com isso, preservar a história de sua vida. É a partir da vida de Clara que vamos nos confrontando com situações, objetos, músicas e diálogos que compõem uma rede cujos os nós são as contradições de um país que, por mais que se queira moderno, persiste nas práticas sociais arraigadas numa visão arcaica de colonizados.
Este enredamento já se inicia com o tempo histórico e o cronológico atrelados. A narrativa se inicia em 1980 e a construção do universo daquele ano se faz por meio de elementos mais abruptos como carros, penteados e figurinos, como os mais tênues: rótulos de garrafa de cerveja, a sensação de novidade de Another One Bites The Dust, sucesso da banda Queen, o anseio por liberdade, seja no balançar dos jovens dentro do carro ao ouvi-la, seja na referência à Revolução Sexual feita por uma tia de Clara homenageada numa festa.
Quase que imediatamente o filme dá um salto temporal grande, mas o fantástico é como o diretor hesita em nos localizar dentro deste salto. Ao longo da narrativa é um cabelo que vai do curto ao comprido, um diálogo sobre o tempo de viuvez até a revelação de uma lápide. Porém, por mais que as décadas passem, o momento histórico aparenta não se ter se modificado. Sob os ditames de uma ditadura militar, uma juventude demonstrava o desejo de autonomia através de comportamentos e, agora, em meio à democracia, ainda se faz mais do que necessária a defesa da liberdade.
Por meio da direção de arte impecável, nos elucidamos de que a luta de Clara não é apenas pelo apartamento, mas pelo o que ele significa: sua vida, sua história, sua personalidade. O armário rústico é mais do que um objeto velho, ele carrega lembranças de amores da geração anterior. Os LP’s não são apenas mercadorias exóticas, mas o delírio fugaz dentro do refúgio do lar; o cartaz de Barry Lyndon, de Stanley Kubrick, não é mero enfeite de parede, mas o significado da luta contra uma elite que esmaga os outros e a si mesma em sua lógica predatória.
Lógica esta figurada na crítica à especulação imobiliária que se favorece da corrosão do tecido social, pautado na desigualdade econômica. O próprio sistema que se coloca como a engrenagem do progresso se aparelha de uma modernidade fajuta, que não possui escrúpulos em adotar-se de mecanismos medievais com o objetivo de coagir Clara. A personagem possui consciência do monstro que enfrenta ao preferir focar nas injustiças sociais, simbolizadas por um cano de esgoto que separa pobres e ricos, do que servir de guia para uma visita advinda do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, é lúcida em relação à classe que pertence, pois enfatiza seus outros apartamentos e também a exploração que imputava a uma empregada borrada na memória, sendo condescendente ao roubo das joias que a mesma praticava. Mas mesmo sendo de uma classe privilegiada, sabe que está solitária em uma luta em que pode ser destroçada a qualquer momento.
Uma camisa florida apertada com cinto de nó saliente, mais duas rosas simbolizando vida e morte nas mãos de Clara explicita-nos de que ela é a alma do filme. A atuação de Sônia Braga é intensa e inesquecível ao compor uma personagem que vai do cômico ao trágico, do terno ao bruto em segundos. A rigidez, ao chamar a filha de idiota, logo é seguida de um abraço entre ambas. A educação ao tratar com os seus agressores se alterna com a rispidez de quem sabe estar no seu direito. A resignação diante da coação de merda literal de sua situação é rapidamente substituída pela fúria de jogar a merda no ventilador, no intuito de intimidar seus adversários. Seu câncer derrotado funciona como uma metáfora de resistência de quem passou o pior, todavia são suas forças e fragilidades, demonstradas em muitos momentos, que se expressam em nome de suas cicatrizes.
A complexidade de Clara/Sônia Braga
É uma das personagens mais complexas da cinematografia brasileira. Kleber Mendonça Filho se configura como o “Chico Buarque do cinema”, nas palavras da própria Sônia Braga. Do prazer negado à palavra de ordem, “Estou puta, mas não estou estressada”, Clara representa a mulher que ganhou espaço e protagonismo nas últimas décadas. É através deste enfoque que Aquarius apresenta ser uma película corajosa ao deixar os homens em papéis secundários e focar na beleza, austeridade e garra das mulheres em detrimento de uma visão masculina ainda agarrada a uma lógica da mulher como um ser totalmente frágil ou sexualizado. Num plano em que há a averiguação de uma possível ajuda de um amigo salva-vidas, que entende o pedido de telefone como uma cantada, a separação dos dois por uma coluna indica que ambos, mesmo o amigo sendo jovem, estão em espaços opostos de evolução e visão de mundo.
Na composição da alma de Clara, um dos elementos que mais se destacam é a trilha sonora. A seleção das músicas é primorosa, estas se encaixam perfeitamente em cada momento de angústia, revolta e alegria da personagem. Versos como “Eu sei que eu tenho um jeito/ Meio estúpido de ser” de Fauzi Arap, na voz de Maria Bethânia, “Que por um momento/ Pensei ser verdade/O sonho que eu tive”, de Roberto Carlos e “Não deixes a vela apagar/ Nem o mastro cair/ Nem a corda prender”, de Almir de Oliveira, são poucos dos muitos que traduzem a multidiversidade interior de uma mulher que se depara com um mundo também multidiverso, cujas situações problemáticas apenas pedem como solução um LP na vitrola. Ao fim desta narrativa, o espectador sensível vai murmurar os acordes de Hoje, de Tayguara, como se levasse consigo a alma de Clara em seu coração.
Numa época em que história e lembrança resistem a uma ordem autoritária onde o presente e futuro se fazem valer, a polêmica em torno do que é exterior ao filme também se desvanecerá. Com isso, Aquarius brevemente estará fora das páginas das mesquinharias políticas da imprensa boçal, ironicamente presente em um certo momento do filme, ocupando seu lugar de destaque como clássico a denunciar uma sociedade cuja modernização é para alguns poucos, que esmagam um povo sob as engrenagens de um atraso secular.
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