Antes Que Tudo Desapareça é um filme que chegou um pouco tarde…
O principal problema de Antes Que Tudo Desapareça (Sanpo suru shinryakusha), nova peça do cultuado diretor Kiyoshi Kurosawa (de Para o Outro Lado), é de zeitgeist. Se esse filme tivesse sido realizado no auge das ficções científicas de crítica política e social nos anos 50, ele com certeza seria uma daquelas obras que nós costumamos celebrar aqui no Formiga. O problema é que o filme que chega agora ao Brasil é de 2017, e não em 1957. E, hoje, nós somos um pouco mais exigentes.
O potencial “B” do filme se revele logo na saída, com a comparação imediata e inevitável da sinopse com o clássico Vampiros de Almas, de 1956: em Antes que Tudo Desapareça, três aliens tomam os corpos de seres humanos para preparar a Terra e a humanidade para uma invasão em larga escala.
São dois núcleos: Akira e Amano (Yuri Tsunematsu e Mahiro Takasugi) são dois adolescentes tomados por alienígenas que realizam sua tarefa com regozijante objetividade, se importando muito pouco ou quase nada com as consequências das suas ações. Eles sequestram o jornalista Sakurai (Hiroki Hasegawa) como “guia” para se relacionarem com as forças humanas e agilizarem sua missão.
Já no outro núcleo nós temos um outro alien tomando o corpo de Shinji Kase (Ryuhei Matsuda), um marido infiel em um casamento em ruínas com Narumi (Masami Nagasawa). O alien, em total oblívio em relação às condições do casamento – na prática e conceitualmente, acaba desenvolvendo uma dinâmica completamente diferente com a sua involuntária guia.
A parte do “conceitualmente” ali em cima não foi jogada aleatoriamente – é aqui que reside a pegadinha de Kurosawa. Esses aliens tem uma vantagem que os de Vampiros de Almas não tinham: em um toque singelo na testa de um humano, eles são capazes de se apropriar de “conceitos”, e assim, compreender melhor a raça que irão conquistar. Ao realizar esse truque, o humano “roubado” é despido completamente do conceito em questão, sequer realizando o que perdeu.
Conceitualmente – sem trocadilhos – o filme é até interessante. Kurosawa tem uma longa e rica tradição em explorar os extremos da condição humana, particularmente em A Cura, de 1997. Em Antes que Tudo Desapareça, ele resolve também apostar na sua capacidade de transitar entre gêneros. Mesmo que seu período glorioso tenha sido com j-horrors, ele sempre conseguiu manter um padrão de qualidade com poucos recursos, sempre explorando o potencial metafórico de suas histórias.
Dessa forma, a ideia de alienígenas que buscam compreender a humanidade “roubando” “conceitos” – as aspas em ambas as palavras são intencionais – é um prato cheio que serviria ao espectador em diversos aspectos. Pontualmente, Kurosawa faz sutis críticas sociais na forma de roubos de conceitos: o garoto ansioso e meio em pânico que é despido do conceito de “propriedade” passa a explorar o mundo e militar politicamente – o roubo do conceito de propriedade redefine seu conceito de liberdade; ou o chefe misógino e controlador que é liberto do conceito de “trabalho” que imediatamente desanda em uma euforia infantilizada; redefinindo o conceito de “alegria”. É como se os aliens retirassem barreiras mentais que impedem que certos conceitos prevaleçam sobre outros.
Em si, isso já levanta um debate que remete às conversas acaloradas do século XX e XXI entre epistemologia/ontologia/fenomenologia vs. ciências cognitivas – uma briga que, acredite, só os mais tenazes (ou, como Kurosawa, incautos) se atrevem a entrar. Mas, fora isso, há também um subtexto político: logo no início, nós vemos um cartaz anti-ocupação militar americana, e o decorrer do filme trata forças militares de forma caricata e ignorante – a velha briga de Kurosawa contra as forças institucionais que cerceiam liberdades individuais. A analogia entre os aliens e forças imperialistas estrangeiras é bastante clara na visão do diretor: se vocês fossem capazes de compreender outros, não tomariam o que é deles.
Não obstante, em um contexto “micro”, a relação da abstração de conceitos é uma verdadeira benção para Narumi, que relutava em um casamento destruído pelo marido infiel. Quando Shinji um dia é encontrado completamente “em branco”, Kurosawa resolve brincar de “John Locke millennial”, usando Narumi para reconstruir valores mais simples – mas mais resistentes – relacionados a emoções universais, como amor e confiança, nesta tábula rasa alienígena, oferecendo uma espécie de redenção para sua crítica cruel feita no outro núcleo.
Perdido em si mesmo, apesar do potencial
O recado é claro: a nossa liberdade individual e os poderosos valores como o amor, que unem no lugar de dividir a humanidade, e que são abrangentes ao ponto do transcendentalismo, irão prevalecer sobre os construtos sociais abstratos reducionistas impostos por forças maiores-que-a-vida sobre os indivíduos. Independente de ser piegas ou não, é a nossa crença nesses valores que irá nos redimir – Kurosawa pretendendo ser uma espécie de Bertrand Russell japonês. Nada mal para um filme com cara de “B”.
Pois é. Só que é precisamente aí que residem os problemas. Porque todo esse escopo conceitual beira quase a superinterpretação perto do que o texto realmente oferece. De fato, são mais de duas horas de filme com o diretor exibindo velhos tiques relacionados ao seu senso de humor bastante particular – que tornam seu estilo bastante reconhecível, mas que limitam o alcance de obras que se pretendem mais abrangentes quanto essa.
Como dissemos acima, o diretor sabe sim, transitar entre gêneros, mas no caso particular de Antes que Tudo Desapareça, essa “transição” parece mais “bagunça” mesmo – talvez um de seus aliens devesse ter retirado um desses conceitos de sua mente para ver se o outro se tornava mais claro. O fato é que, entre sci-fi de subtexto político, drama, ação e comédia boba, o filme se arrasta muito mais do que deveria, tornando a constante repetição das intenções e métodos dos invasores bastante extenuante para o espectador.
Em que pese que o estilo japonês de cinema seja bastante distinto – e o espectador ocidental tem que levar isso em consideração – o filme parece muito mais um pastiche não-intencional do próprio estilo de Kurosawa do que os pastiches que ele mesmo realiza sobre sua escola de cinema. O que era para ser uma espécie de celebração do cinema “B” acaba parecendo só “B” mesmo.
O filme contrasta em valores técnicos. As atuações são, no geral, muito boas, com destaque para o núcleo do casal; a fotografia é consistente com a transição de gêneros e o som é ótimo; entretanto, a montagem é desastrosa, os efeitos especiais risíveis (em momentos que não eram para ser) e o roteiro, baseado numa peça de Tomohiro Maekawa, mas de autoria do próprio diretor em parceria com Sachiko Tanaka, não sabe o que quer da vida: se criar uma peça estritamente de entretenimento ou realizar críticas sociais e filosóficas mais profundas.
Kurosawa tem uma carreira já muito bem consolidada como um cineasta de muitas facetas. Mas, na última década, anda patinando, entregando obras de qualidade questionável. Muito infelizmente, Antes que Tudo Desapareça se enquadra nessa categoria. Como dissemos no início, talvez 60 anos tivessem tornado-o um clássico cult. Hoje, parece só meio bobo.
Só podemos esperar que algum alien roube o conceito recente de “cinema” da sua mente. Quem sabe o antigo Kiyoshi Kurosawa seja libertado de lá de dentro.