No fim da década passada, o anúncio da assinatura de Tim Burton na adaptação de mais um clássico infantil gerou uma saudável expectativa nos fãs do mundo inteiro. A marca sombria psicológica do diretor havia resultado em um ótimo trabalho em A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005), adaptação do livro escrito pelo britânico Roald Dahl que, a despeito do foco no público infantil, era sagaz no uso da amargura e das complexidades psicológicas dos personagens que tanto agradam Burton.
Cinco anos depois, outro livro infantil ganharia as telas sob a batuta do “Mestre do Macabro”, igualmente repleto de idiossincrasias psicológicas, personagens perturbados e emocionalmente desequilibrados, além de muitas mensagens entrelinhas. Alice no País das Maravilhas, do igualmente britânico Lewis Carroll, é uma das obras mais importantes do universo infantil e um dos livros mais complexos da literatura universal, sobretudo quando se conhece um pouco sobre as muitas historias que giram em torno de seu ator. A nova versão cinematográfica, no entanto, decepcionou pelo distanciamento exagerado e intencional do texto original, valorizando personagens secundários e um roteiro truculento que explorava muito mais os efeitos especiais e recursos hollywoodianos do que a engrenagens mentais dos personagens. Um filme esteticamente lindo, mas, apesar de bons números de bilheteria, não é exatamente o mais bem lembrado por público e crítica.
Os eventuais problemas de Alice no País das Maravilhas (2010) podem ter ajudado Tim Burton a desistir de dirigir uma sequência. Provavelmente, após muitas negociações, o diretor norte-americano aceitou ser o produtor de Alice Através do Espelho (Alice Through the Looking Glass), filme que marca a volta de todos os principais personagens do episódio anterior, agora dirigidos pelo inglês James Bobin, conhecido pelo trabalho nos dois últimos Muppets (2011 e 2014). Se a produção de 2010 já não era um grande filme, a continuação de 2016 é fim da ladeira dessa franquia – como assim se espera.
Apesar do relativo sucesso da tentativa de Bobin em respeitar os traços de Burton, esteticamente falando, todo o resto é inferior em qualidade técnica e artística. A começar por um filme que em nenhuma hipótese pode ser chamado de adaptação. Alice Através do Espelho, com exceção do título, não tem um segundo sequer ou ao menos uma frase de semelhança com o livro que lhe deu origem. Se o filme e Burton já não era fiel à obra de Lewis Carroll, aqui ela é completamente esquecida e sem qualquer cerimônia ou remorso. A produção é meramente uma sequência dos fatos anteriores. Por isso, é importante descrever o enredo:
Após voltar das aventuras no país das Maravilhas, Alice (Mia Wasikowska) se entrega de vez a vida de aventureira, tornando-se capitã do navio que pertencera a seu pai e que agora atravessa o mundo em diferentes missões. Anos depois, ela volta para casa e encontra a mãe em dificuldades financeiras e se vê forçada a abrir mão do estilo de vida que tanto ama, cedendo à pressão de uma sociedade machista que não aceita a independência de uma mulher jovem e solteira. Em meio a angústia da situação, Alice recebe novamente um chamado para voltar ao país das Maravilhas para ajudar a salvar a vida do amigo Chapeleiro (Johnny Depp), que entrara em profunda depressão após descobrir que seus pais podem não estar mortos. Para ajudá-lo, Alice precisa pedir ajuda ao próprio Tempo (Sacha Baron Cohen) para voltar ao passado e impedir a tragédia.
Alice Através do Espelho mantém praticamente todas as grandes estrelas do primeiro episódio. Além de Depp e Wasikowska, continuam em cena Anne Hathaway e Helena Bonham Carter, nos papeis das rainhas Branca e Vermelha, respectivamente. O elenco, no entanto, está desafinado, fraco em atuações subvalorizadas no roteiro. Hathaway está ainda mais avoada e tola, impingindo uma rainha Branca sem personalidade, vazia e dispensável. Depp está novamente irreconhecível, não só pelo excesso de maquiagem, mas também pelo desempenho constrangedor, justamente pela falta do carisma e do personalismo que tão bem aplica aos seus trabalhos, além de fundamental na construção do próprio personagem do Chapeleiro. Carter está em melhor nível e até consegue arrancar sinceras (porém esparsas) risadas da plateia, mas o tom exagerado demais desvirtua o equilíbrio das cenas em que participa. Destaque positivo para Mia Wasikowska e, principalmente, para Sacha Baron Cohen, que consegue dar alguma personalidade e carisma para um personagem que poderia exigir muito mais complexidade que o tolo roteiro o impõe.
O roteiro, aliás, é a grande âncora que afunda o filme. Cheio de buracos, deixa muitas pontas soltas e momentos que obrigam o espectador a usar a imaginação para remendar as falhas. A história nada mais é que uma aventura rasa e sem conteúdo, mas cansativamente frenética. Embora haja uma tentativa de se colocar uma mensagem no enredo, com uma crítica social e feminista sobre o papel da mulher na sociedade, a questão acaba não se desenvolvendo, desperdiçando uma boa sacada da roteirista Linda Woolverton.
A narrativa é excessivamente didática. Tudo o que está em cena precisa ser explicado novamente pelos personagens envolvidos. Se a cronosfera, objeto responsável pela regularidade do tempo do mundo (devidamente explicado) pode levar Alice ao passado, ela se transforma então, numa máquina do tempo (Alice não perde tempo em explicar isso caso o espectador mais distraído ainda não tenha notado), que pode ser controlada da mesma forma que um navio (Alice também não desaponta em suas aulas). Se o Tempo e a Rainha Vermelha têm uma relação, isso precisa ser devidamente exposto por pelo menos três personagens. Se o passado da vilã tem a ver com o problema enfrentado por Alice, que isso fique claro na boca de muita gente. Tanto didatismo, porém, não é suficiente para explicar muitas dúvidas sobre a história que o público vai acumular durante a projeção. Não se trata de dubiedade intencional, mas de tropeços mesmo.
A velocidade e o exagero visual, no entanto, podem fazer Alice Através do Espelho muito atrativo para crianças e o público mais despretensioso em geral. Fãs de Johnny Depp e do filme anterior também podem encontrar seus motivos para apreciar, embora questionáveis. A produção perde o tom sombrio tão característico de Burton e tão incômodo na escrita de Carroll, dando lugar a um entretenimento familiar feito na medida pra agradar a sua irmã mas nova ou a sua avó, como todo bom filme Disney tem que ser.
A grande importância do filme, no entanto, que poderá fazê-lo um pouco mais memorável (ou menos esquecível), está em ser a última atuação do grande Alan Rickman, morto no começo de 2016. A marcante voz do ator confere a personalidade de Absolem, outrora lagarta e agora borboleta do país das Maravilhas, em uma pequena cena no começo do filme. Sua última frase parece ser um conselho para o cinema atual, em que todos insistem em mexer e remexer em tudo que já foi feito em busca de resultados comerciais cada vez mais desrespeitosos: cuidado onde pisa. E nada mais.