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A Vida Invisível – A câmera terna de Karim! (FORMIGA NA MOSTRA)

Candidato do Brasil a uma vaga na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar, A Vida Invisível é um melodrama com alma brasileira e feminina

“O melodrama rasga nossos corações.” A frase do cineasta cearense Karim Aïnouz durante a coletiva de imprensa realizada após a cabine do filme A Vida Invisível, que teve apresentação especial dentro da programação da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e estreia no circuito comercial dia 21 de novembro, define a atmosfera de seu último longa com precisão. Pelo menos a primeira das muitas camadas que ele apresenta.

Crítica A Vida Invisível

A livre adaptação do romance da estreante Martha Batalha, que narra o imenso desencontro das irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte), que seguem por rumos bem diferentes no Rio de Janeiro dos anos 50, poderia muito bem ser uma produção com a assinatura de Douglas Sirk, caso o rei dos melodramas viesse filmar no nosso país tropical. Filhas de um casal de imigrantes portugueses conservadores, as irmãs, inseparáveis desde a infância apesar das personalidades diversas, entram na vida adulta com desafios também distintos. Enquanto Guida se deixa envolver na paixão por um marinheiro grego, Eurídice segue a cartilha da maioria das mulheres daquela década e casa-se com Antenor (Gregório Duvivier) e vira uma dona de casa padrão, apesar de ainda alimentar o sonho de estudar piano em Viena.

Abandonada pelo homem que ela descobre ter uma amor em cada porto, Guida volta para o Brasil grávida, é renegada pelos pais e enganada sobre a situação de sua irmã, que ela pensa estar na Suíça tocando em grandes concertos. A falsa distância é diminuída por uma série de cartas que Guida escreve periodicamente para Eurídice, na esperança que sejam lidas e respondidas. Nessas cartas, estão verdadeiras declarações de amor fraternal e reflexões sobre o quanto ser mulher nos anos 50 custava sonhos, escolhas e até vidas. Mas é no silêncio que o diretor consegue fazer o melhor dos discursos sobre sororidade e também machismo em A Vida Invisível.

Crítica de A Vida Invisível

(Confira a crítica de Wasp Network, filme de abertura da Mostra!)

A câmera de Karim é terna, se coloca diante das atrizes de forma a registrar seus momentos e manter uma certa distância respeitosa, em especial nos momentos mais críticos da vida de ambas as protagonistas. Sim, pois apesar de Eurídice estar no título do livro que inspirou o filme, ela não é completa sem Guida e vice-versa. Elas não são uma só, mas juntas constroem um bom panorama da condição da mulher. Infelizmente, muito semelhante com a que convivemos atualmente. O invisível do título não condiz apenas com a separação física de Guida de Eurídice, mas de como uma mulher é “vista” naqueles tempos. Um ser sem voz (são muitas as cenas em que as personagens femininas são repreendidas pelo tom de voz que usam), preso dentro de casa, seja num apartamento classe média ou num cortiço.

Sexo e Maternidade

As cenas de sexo protagonizadas por Carol Duarte e Duvivier merecem atenção, pois são retratos da iniciação sexual de muitas de nossas mães e avós. Um casamento precoce, nenhuma educação sexual por parte da família e o reforço dos conselhos de outras mulheres sobre “ser assim mesmo” são mostrados na tela de forma crua. Porém, mesmo diante da violência física, o olhar de Karim guarda certo carinho, como um voyeur que assiste tudo sem poder intervir, mas nem por isso sem se abalar com o que vê. Duvivier vive um típico machão, pouco atento aos desejos da esposa e cujo único objetivo é o próprio prazer e a mesa posta todas as noites na hora do jantar. Por conta de seu carisma, o ator consegue até causar empatia, mas não sem uma boa dose de pena. Um homem tóxico nem um pouco disposto a saber de sua condição.

Crítica de A Vida Invisível

Outro ponto em que A Vida Invisível conquista é em sua abordagem da maternidade. Nem Guida, nem Eurídice escondem que tornaram-se mães contra as suas vontades. Eis a alma feminina de Karim mais uma vez aflorando nas cenas que realiza. O nascimento dos filhos das personagens, diferente de outros exemplares mais tradicionais de cinema, não causa uma superdose de amor incondicional, a descoberta da plenitude. Há uma criança para criar, uma responsabilidade, mas a certeza dela não ter sido desejada permanece. Uma sinceridade que falta em muitos filmes sobre o universo feminino, inclusive alguns dirigidos por mulheres. Guida institui um novo modelo de família quando é acolhida por Filomena (Bárbara Santos), enquanto Eurídice adia sua entrada no conservatório para cuidar da família tradicional que construiu. Ou melhor, foi construída para ela.

Carol Duarte, mesmo com o forte trabalho preparatório junto com a assistente de direção Nina Kopko, deixa um pouco a desejar nos momentos que exigem mais ação que silêncios significativos. Quem inebria o espectador quando aparece é mesmo Julia Stockler, com sua Guida forte, mas sem medo do choro e do pedido de socorro. Fica mais visível nessa jovem atriz a fonte de Uma Mulher Sob Influência, filme de John Cassavetes que foi parte do processo de construção de ambas as protagonistas.

Ao final, Fernanda Montenegro, sem dúvida a maior atriz viva brasileira, surge como uma Eurídice já idosa, mas que ainda guarda o olhar de menina. É incrível como a veterana reverbera a interpretação de Carol Duarte e ainda acrescenta elementos para a personagem, num dos finais mais arrebatadores do cinema brasileiro contemporâneo. Saímos da sala de exibição com o coração arrasado. Eis o melodrama cinéfilo perfeito.

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