A Repartição do Tempo e a repartição do meu tempo
Em A Repartição do Tempo, um chefe do Departamento Público de Registro de Invenções em Brasília utiliza uma máquina do tempo para duplicar os funcionários da repartição que coordena. O objetivo é escravizar as “cópias” para assim conseguir colocar o trabalho em dia.
O primeiro longa-metragem do diretor Santiago Dellape é uma comédia de erros. Não, não é uma semelhança com a obra prima dos Irmãos Coen, Fargo. A Repartição do Tempo é literalmente um filme lotado de erros. Quando pensamos em um filme de comédia, subtende-se que o eixo principal está em nos fazer rir. Sei também que despertar o sentimento para tal é relativo, depende muito de diversos fatores (diálogos ou humor pastelão, para citar alguns exemplos), desde que as piadas não sejam racistas, preconceituosas, misóginas, machistas ou homofóbicas, entre outros ataques a minorias.
O fato é que o filme, durante os seus 100 minutos, só me fez dar risada (e curtíssima) em um único momento. No restante, carece de humor e competência narrativa.
O distrato com o espectador
O longa deixa claro a sua homenagem ao cinema dos anos 1980, principalmente aos filmes da Sessão da Tarde que tratavam sobre o assunto de viagem no tempo, como por exemplo De Volta Para o Futuro ou Em Algum Lugar do Passado. Infelizmente, apenas homenagear não ajuda em nada a trazer bons frutos. O roteiro de Dellape é frágil e cheio de furos.
Ora, a partir do início, uma vez expostos os elementos e as regras sobre viagem no tempo, elas devem ser mantidas durante todo o processo. A menos, é claro, que uma virada na história permita quebrar o acordo que foi estabelecido anteriormente com o espectador. Não é isso que acontece em A Repartição do Tempo. No epílogo, o distrato com o espectador, o que também facilmente rompe a verossimilhança de algo que presenciamos nas primeiras cenas, quando há a explanação da lógica interna da narrativa.
Presenciando mais problemas no roteiro, o terceiro ato é acelerado e confuso, como se o diretor quisesse terminar a trama a qualquer custo e de qualquer jeito.
Personagens esquecíveis
Não há qualquer personagem que seja memorável. O chefe da Repartição, vivido por Eucir de Souza (de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, Elis e O Menino da Porteira) é mimado (o que traz elementos interessantíssimos da infantilidade do personagem), autoritário e sociopata. Personagem de extrema importância que se esvazia com atuação over de Eucir, aqui jogando fora toda e qualquer potencialidade do personagem em prol de discursos e expressões irritantes que poderiam ter sido facilmente percebidas e anuladas pelo diretor.
Os protagonistas e o principal par romântico da trama, Edu Moraes e Bianca Muller (respectivamente Jonas e Carol), são previsíveis e passam cada cena no piloto automático da atuação. O problema é ainda maior com o personagem insípido de Edu Moraes. Difícil manter o espectador no filme com um protagonista tão desinteressante.
Se Jonas e Carol não são capazes de atrair nosso interesse, ainda há caminhos piores. O personagem Zé, vivido por André Deca, é completamente insosso e sem graça alguma. E ainda por cima é o responsável por fazer acontecer aquilo que mais detesto em filmes de comédia: forçar uma piada onde a mesma não existe, ou que não surtiu efeito anteriormente.
O alívio no elenco e no campo cômico aparece nos breves personagens de Tonico Pereira e Dedé Santana (já viu nosso vídeo sobre O Cinema dos Trapalhões?), sendo o segundo responsável pelo único momento de risos durante toda a projeção, como havia citado logo no primeiro parágrafo desse texto.
A Crítica ao serviço público fantasma
De todos os problemas citados acima, a crítica ao sistema público em Brasília é um colírio para o desastre de Dellape. Satirizar repartições públicas abandonadas pelo governo (que servem apenas como “cabides de emprego”), e a ineficiência ocasionada pelo péssimo serviço prestado dos funcionários concursados, é o tiro certo do diretor, como também esquemas de corrupção e nomeação de familiares de deputados e senadores para altos cargos públicos.
Infelizmente as denúncias acabam por generalizar todo o serviço público, como se todas as repartições fossem abandonadas e ineficientes. Nesse barco, qualquer concursado é alvo de críticas, independente de ser municipal, estadual ou federal.
Caro leitor, sou professor efetivo pelo Estado de São Paulo e sei o quanto o trabalho é extenso e árduo. Fazer críticas a certos serviços públicos é plausível e apoio, mas generalizar causa desonestidade e má-fé. Há serviços, como o da minha profissão, que fazem de tudo pelo bem-estar e desenvolvimento intelectual de todos os envolvidos. Há casos especiais, mas que devem ser examinados isoladamente. O problema está inteiramente na generalização.
A Repartição em festivais
Vencedor de três prêmios no 49ª Festival de Brasília e ganhador de uma menção especial no 37º Festival Fantasporto em Portugal, A Repartição do Tempo me faz acreditar e aguardar ansiosamente pelo retorno de Marty McFly e Doctor Brown para corrigir os erros ocasionados por esses festivais e trazer o equilibro de volta ao Universo!