A Garota Desconhecida e seu roteiro frágil
Na década de 1990, quando os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne se tornaram internacionalmente conhecidos dentro do cenário cinematográfico, eles chamaram atenção pelo seu potencial e o estilo próprio e peculiar de filmar dramas humanos. Nos anos seguintes, eles aprimoraram tanto os aspectos técnicos quanto as histórias que narravam. Dessa época, devem-se destacar as obras-primas O Filho e A Criança, de 2002 e 2005, respectivamente. No entanto, nos últimos filmes, os irmãos têm encontrado dificuldade de se reinventar dentro do próprio estilo. Além disso, a qualidade e profundidade das histórias diminuíram consideravelmente, condição que se mantém em A Garota Desconhecida (La Fille Inconnue).
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O filme tem como protagonista a jovem doutora Jenny Darvin (Adèle Haenel). Uma médica competente e atenciosa, ela está no auge da carreira. No entanto, certa noite, enquanto discutia com o seu estagiário, ela se recusa a atender uma mulher que batia freneticamente na porta. No dia seguinte, ao ser visitada por policiais, descobre que a tal mulher foi encontrada morta nas redondezas e que a câmera na entrada do consultório foi a última a registrar os seus últimos minutos de vida. Se sentindo culpada, ela começa a investigar por conta própria o acontecido.
Tecnicamente, A Garota Desconhecida contém todos os elementos que transformaram a obra dos irmãos Dardenne em uma das mais veneradas por críticos de todo o mundo. No filme, estão presentes os planos longos que observam a ação (ou a ausência dela) e os personagens, o estilo naturalista, a mise-en-scène calculada mas nunca engessada e a trilha diegética. Entretanto, se nas décadas de 1990 e 2000 essas características trouxeram um ar de criatividade e inovação, nos últimos 10 anos elas se tornaram repetitivas, deixando claro que os diretores não encontraram maneiras diferentes de auto reinvenção. Contudo, essa repetição cansativa não incomodaria tanto se o roteiro do filme não apresentasse falhas e contasse uma história envolvente repleta de possíveis interpretações e diferentes caminhos a serem trilhados. Porém, não é isso o que acontece.
Em primeiro lugar, o filme erra ao dar a alguns personagens coadjuvantes mais tempo em tela para que os seus dramas possam ser desenvolvidos. Escrito pelos dois irmãos (como sempre), o roteiro apresenta várias situações em que somos momentaneamente desviados da protagonista e trama central para saber um pouco mais sobre personagens periféricos à narrativa. Portanto, há um instante destinado à explosão de ciúmes da irmã da garota morta e outros aos dramas pessoais enfrentados pelo estagiário de Jenny. No entanto, como os dois personagens são desinteressantes e quase insignificantes na história, esses momentos são completamente dispensáveis.
O roteiro também erra ao tentar ser um suspense sobre o que pode ter acontecido com a garota morta. Além de os diretores não acertarem o tom nas cenas mais investigativas (não há intensidade ou sensação de perigo nessas cenas), os desdobramentos da história nunca envolvem o espectador a ponto de ele querer saber qual será a próxima revelação, ou quais serão as consequências de alguma descoberta feita pela protagonista. Ademais, já no terceiro ato, quando o público enfim descobre o que aconteceu com a falecida, as escolhas feitas pelos Dardenne são tão óbvias e convencionais que a impressão dada é a de que estamos assistindo a um suspense totalmente genérico.
Porém, acima de tudo, o maior equívoco da obra é não ter intensidade dramática. Nos seus melhores filmes, os diretores contrastavam perfeitamente o estilo naturalista com histórias que iam revelando lentamente toda a sua intensidade. O choque que nascia entre a aparente “opacidade” da técnica cinematográfica e a história que explodia de sentimentos e tensões emocionais era a grande responsável por transformar esses filmes em experiências tão arrebatadoras. Quando, por causa de uma história que nunca ganha vida, esse choque não acontece, o que se tem é um filme tão morno quanto a técnica empregada. E é exatamente isso o que acontece com A Garota Desconhecida.
A melhor coisa do filme é a sua protagonista
Todavia, entre os vários erros apontados, os irmãos Dardenne acertam em cheio na construção da protagonista do filme. Interpretada brilhantemente por Adèle Haenel (embora mantenha a expressão fechada, a atriz transmite a generosidade da personagem através do olhar), Jenny é uma médica à antiga, uma daquelas espécies raras que visitam os pacientes nas suas próprias casas e dão a eles o número do telefone para que liguem no caso de alguma emergência. Substituindo o seu mentor após este ter de se ausentar, ela está prestes a ser contratada para ir trabalhar em um lugar onde, ao mesmo tempo que ganhará mais, terá de ter uma relação diferente com os pacientes.
E, se na cabeça de qualquer pessoa que é competente e vive em função do trabalho (como Jenny), isso pareceria um avanço na carreira, para ela é motivo de dúvidas, uma vez que não é obcecada com o emprego por ser uma workaholic, mas sim por ter um espírito benevolente interessado em ajudar o maior número possível de pessoas. E não deixa de ser uma cruel ironia que o maior erro da sua vida será o de ter recusado, em um momento em que se exaltava com o seu estagiário, ajuda a uma pessoa que estava próxima da morte. Isso a coloca em uma espiral de culpa que será aliviada apenas com a descoberta de todos os motivos do falecimento da garota, e a solidão que ela enfrenta durante a investigação parece nunca impedi-la de continuar buscando as respostas.
A Garota Desconhecida é um filme sobre como uma única decisão, tomada em um momento de vulnerabilidade, pode alterar por completo o rumo de nossas vidas. No entanto, se tivesse se contentado em ser somente um estudo de personagem, até mesmo o estilo repetitivo dos Dardenne não teria incomodado tanto, dado que a protagonista é profunda o suficiente para captar a nossa atenção e fazer com que nos importemos com o seu destino. Mas, ao tentar dar espaço para outros personagens aparecerem e negligenciar a intensidade no relato do drama e suspense, o filme se tornou muito irregular, o que, auxiliado pela falta de coragem de adicionar novos elementos à forma consagrada, mostra ser mais um fracasso dos Dardenne.