A qualidade do cinema sul-coreano não é novidade faz tempo, tornando repetitivo qualquer elogio à cinematografia de lá. Não apenas isso, um nome local, há tempos, se destaca no meio de tanta gente talentosa, aumentando uma expectativa que já era considerável pelo país em questão. Chan-Wook Park surpreendeu o mundo com sua Trilogia da Vingança e, há mais de uma década, vem se mantendo como um artista que vale a pena acompanhar. A Criada (Ah-ga-ssi), seu novo filme, não foge à regra e satisfaz aquela parte do público que espera algo excepcional.
Creditado também como co-roteirista, como de costume, o cineasta escolheu adaptar o romance de Sarah Waters, Fingersmith, trocando sua ambientação na Inglaterra Vitoriana pela Coréia sob a ocupação japonesa. Por volta da década de 1930, a jovem Sook-Hee (Tae-ri Kim) ganha a vida com pequenos crimes, porém bem organizados, trabalhando em grupo e seguindo a “profissão” da mãe já falecida. Recrutada pelo Conde Fujiwara (Jung-woo Ha), cujo título nobre e o nome japonês são fachadas, ela aceita infiltrar-se como criada na mansão da herdeira abastada Hideko (Min-hee Kim), que tem seu tio Kouzuki (Jin-woong Jo) como guardião. O plano é facilitar o caminho para que o Conde se case e fuja com Hideko, que já estaria prometida para o próprio tio, para depois interná-la em uma instituição psiquiátrica.
Óbvio que não é tão simples quanto parece aos vigaristas e reviravoltas são cartas marcadas na história, mas, mesmo sabendo que elas chegarão mais cedo ou mais tarde, em momento algum soam previsíveis. Dividido em três segmentos que, quando necessário, se encaixam com momentos simultâneos com outro ponto de vista, A Criada é um filme longo, com quase duas horas e meia, mas justifica muito bem sua duração. Isso se deve, em primeiro lugar, pelos personagens fascinantes que o roteiro nos apresenta. A sordidez e a ambiguidade que permeia esse quarteto principal faz do longa uma espécie de noir com roupagem inesperada. Cada um dos personagens tem camadas que vão revelando-se conforme o filme permite ao público conhecê-los melhor, contando com um elenco impecável e afinado entre si.
Cada nova informação assimilada pelo espectador traz mais curiosidade pelo desenlace. Com revelações que mudam aos poucos a natureza da trama, existe cuidado na cadência e preparação para que isso não cause qualquer estranhamento, ou prejudique o ritmo, absolutamente seguro do início ao fim. Aí está mais um bom motivo para sua duração, na medida para a proposta do filme.
Conceitualmente, A Criada é um filme que traz algo do ótimo e recente Elle, de Paul Verhoeven, onde encontramos alguns paralelos no sutil confronto delineado logo no início e seus inevitáveis desdobramentos. Evidentemente, as comparações não são tão diretas, mas refletir sobre a proximidade entre eles acaba se tornando um exercício interessante e pertinente. A discussão fica ainda melhor quando pensamos sobre como esses dois filmes seriam, caso fossem produzidos no conservador mercado hollywoodiano.
Enriquecendo o conjunto, na parte visual é que Chan-Wook Park não iria decepcionar. O diretor dá uma aula de narrativa, instigando seu público quando faz jogadas interessantíssimas entre diálogo e imagem, como quando Sook-Hee ouve o relato sobre a morte de sua mãe, ou evidenciando algo que tem ligação com outra coisa mostrada momentos depois. Além disso, ainda que tenha um estilo que o aproxima do clássico, o diretor não se acomoda e investe em movimentos de câmera suaves e elegantes que se destacam, sem desperdiçar a função narrativa. Tudo isso e ainda permitindo-se algum alívio cômico, evitando que experiência pese demais.
A mansão de Hideko, que mistura a arquitetura da Inglaterra com a do Japão, fantástico design de produção de Seong-hie Ryu, sua parceira habitual, tem toda sua opulência e suas dimensões devidamente evidenciadas pelos enquadramentos escolhidos. Também salta aos olhos a fotografia de Chung-hoon Chung, outro profissional que trabalha com o cineasta há bastante tempo. Sóbria e naturalista, como convém a um filme de época, a iluminação foge de qualquer clichê, seja em internas ou externas, sem chamar atenção demais para si. Tanto o design de produção quanto a fotografia servem ao único propósito de dar suporte à história, criando aqui uma obra com equilíbrio raro.
A Criada vai além de um filme de época muito bem realizado e mais um motivo para elogiar o cinema sul-coreano (junto aos recentes Invasão Zumbi e O Lamento). É inteligente, instigante, provocador, elegante e, por isso tudo e mais, uma experiência cinematográfica marcante. Para ver e rever.