Abram alas para o herói – o personagem
Toda história deve promover uma mudança. Seja no status quo, seja no personagem que nos guia. Por isso que ouvimos sempre falar que um roteiro é uma “jornada”.
Desde Ulisses e sua odisseia, as histórias sempre nos levam por caminhos que, invariavelmente, atravessam infernos e promovem renascimentos. E um personagem precisa passar pelas provações de deuses e demônios para que tenha sua “alma” purificada e dignificada. Essa é a narrativa clássica que perdurava desde os tempos de Aristóteles, e que vemos sempre em narrativas que utilizam estruturas como a “jornada do herói“. Esse personagem que muda “magicamente” remete aos deuses e seus desígnios inescapáveis. A “iluminação” que os acomete e provoca a mudança é o toque divino sobre suas cabeças.
Mas na época em que vivemos e que tentamos emular nos filmes, séries e livros contemporâneos, onde o ser humano é falho e quase imutável, torna-se quase incoerente criar personagens que mudam da água para o vinho em apenas “uma jornada” metafísica.
Então como criar transformações que convençam o público que é verossímil que um personagem sofra uma mudança de comportamento tão impactante quanto Walter White em Breaking Bad? Como criar o tão aclamado anti-herói dos dias modernos?
A mudança de um personagem não depende de um evento somente. Não foi o câncer que “libertou” o Übbermensch de Nietzsche em Walter. Heisenberg sempre esteve lá sob o manto do professor.
Quando vamos definir as características que um personagem terá no início de sua jornada, já tendo em mente que haverá uma transformação devemos ver se ele é um “personagem que aprende” ou um “personagem que emerge”.
O personagem que aprende é como uma estátua de mármore. Ele deve ser moldado lentamente no decorrer da estória e assim como o mármore e sua dureza característica, ele vai sofrendo com as retaliações e perdendo pedaços de si que nunca mais serão recuperados. Mas isso é fruto de golpes duros e sofridos que vão destruindo seu estado bruto e sua mudança é inevitável e irreparável independente do fim dos golpes da talhadeira.
O que veio primeiro: o ovo ou o personagem?
O personagem que emerge sempre esteve lá. É como um ovo que cobre um novo ser. Porém, esse ser SEMPRE foi o que é e a casca era apenas uma forma de camuflagem que o protegia do exterior que não aceitaria a forma real dele. Assim como a frágil casca do ovo, o impacto para liberá-lo não precisa ser tão forte quanto um golpe de talhadeira. Porém, enquanto ainda houve qualquer pedaço de casca que possa ser usada como proteção, esse personagem vai tentar se manter escondido pois uma vez que ele estiver completamente descoberto, nunca mais irá se camuflar novamente.
Walter é o segundo caso. Em contraponto dele, na mesma série temos diversos personagens que se encaixam no primeiro caso. Por exemplo, seu cunhado Hank. Duro como um bloco, o policial teve que ser moldado por 5 temporadas para que suas mudanças formassem uma nova imagem. Porém ele não deixa de ser mármore só porque tem outra forma.
Portanto, se quisermos criar um personagem que sofrerá uma transformação real e verossímil, é preciso perceber como ele deve ser apresentado inicialmente e que fatores o mantêm nesse formato inicial. O que existe ou falta na vida dele que o faz estar preso na forma original? E o que seria necessário para promover a transformação.
Novamente pensando nos dois tipos de objetos que definem os personagens, o mármore precisa de fatores externos, algo alheio a sua vontade e que exerça força bruta em sua superfície. Ele não tem a capacidade de se defender ou contra-atacar mas é duro e irá resistir a mudança enquanto puder.
Já o segundo personagem pode sofrer tanto de forças externas quanto internas. Qualquer um dos lados pode fazer com que a casca comece a ser desfeita, mas geralmente acabamos criando um ataque externo que inicia a destruição da camuflagem. O ser que lá se esconde pode ser qualquer coisa, e não saberemos enquanto o ovo estiver intacto. Porém a visão de dentro para fora pode assustar o ser num primeiro momento mas também pode fasciná-lo a seguir. Então essa mudança acaba sendo concluída com o ser eclodindo orgulhosamente de seu invólucro. Um nascimento perfeito.
Construir com força, ma non troppo
É preciso também, na construção dessas forças saber pesar a mão, pois a força errada pode não dar golpes suficientes para que obtenhamos uma obra inteligível (ou expor o ser dentro da casca), ou ainda, transformar todo o bloco em um amontoado de pedras quebradas (e matar a criatura antes de seu nascimento).
Seja qual for a forma que você escolher para seu personagem mutante, a parte principal a ser apresentada é justamente esse processo que o leva de um lado a outro da jornada. Se bem construída você pode começar de um bloco maciço e terminar com uma estátua irretocável e adornada de véus de mármore como as obras de Giovanni Strazza, ou transformar uma forma primal como um ovo em um ser pulsante e perigoso como um dinossauro. Desde que se tenha a paciência e o bom manejo das ferramentas, seu espectador ficará maravilhado da mesma forma.
Esse foi o segundo artigo de uma série que fala sobre roteiros. Se quiser ver a primeira parte clique aqui. Se gostou e quiser comentar, fazer perguntas, comentários e até discordar fique a vontade. Obrigado e até o próximo!