Beleza Oculta é um drama muito ruim
Antes de começar esta crítica, quero pedir ao caro leitor que me acompanhe em um breve exercício de imaginação. Caso já os tenha visto, procure relembrar de Adorável Vagabundo (1941) e A Felicidade Não Se Compra (1946), dois dramas inspiradores do mestre Frank Capra. Eles já estão frescos na memória? Ótimo. Agora, junte um dos principais elementos da história do filme de 1941 (um sujeito que aceita se passar por uma outra pessoa) e o principal charme da obra de 1946 (um homem deprimido sendo ajudado por um ente sobrenatural) e tente imaginar uma história a partir dessas duas premissas.
Depois, troque o carisma natural de James Stewart e Gary Cooper pela canastrice típica de Will Smith. Em seguida, substitua a destreza de Frank Capra na direção pela apatia de David Frankel (o diretor de O Diabo Veste Prada e Marley & Eu). Por fim, no lugar da profunda espiritualidade, coloque slogans publicitários e frases de auto ajuda. Pronto. Assim, você tem Beleza Oculta (Collateral Beauty).
No filme, Howard (Will Smith) é um pai e marido feliz. Além disso, ao lado do sócio e melhor amigo, Whit (Edward Norton), comanda uma bem sucedida agência de publicidade. No entanto, ele perde a filha e, deprimido, decide abandonar tudo. Preocupados com o futuro da empresa, uma vez que Howard, sendo essencial para a manutenção dos negócios, se recusa a ir em reuniões, Whit e dois outros sócios, Claire (Kate Winslet) e Simon (Michael Peña), decidem contratar uma investigadora secreta a fim de que ela encontre alguma atividade insana que possa invalidar o direito de voto de Howard na reunião de venda da agência.
Descobrindo que o colega escreve cartas para o Amor, o Tempo e a Morte, eles contratam atores (Keira Knightley, Jacob Latimore e Helen Mirren) para interpretar essas abstrações. A intenção é registrar com uma câmera a conversa de Howard com os três e depois apagar digitalmente a performance de cada um deles. Todavia, ao passo que os atores começam a despejar sabedoria e ajudar os sócios a solucionarem os próprios problemas, a sua verdadeira natureza passa a ser um mistério.
Escrito por Allan Loeb, o roteiro de Beleza Oculta é um amontoado sem fim de clichês e pieguices. Ao optar por dedicar tempo aos dramas pessoais de todos os personagens (essa escolha poderia ser um dos méritos do filme, mas, pela forma como é trabalhada, é um dos seus piores defeitos), ele precisa criar conflitos que funcionem por si só e tratar de temas com os quais todo espectador pode se relacionar. No entanto, como não há tempo hábil para trabalhá-los, Loeb recorre a todo tipo de situação extrema: há doença terminal, pai odiado pela filha, mulher achando que está velha demais para engravidar, etc. Em nenhum momento do filme há sutileza. Tudo é pesado e artificial.
Além disso, essa opção de dar mais tempo em tela aos personagens coadjuvantes deixa a narrativa sem foco (inclusive, durante o primeiro ato, tive a impressão de que o protagonista era Whit e não Howard). Essa falta de foco só aumenta com a oscilação constante entre comédia e drama e a dificuldade que o filme tem de abraçar ou não o sobrenatural. Deixando para o final a revelação sobre a verdadeira natureza dos atores (revelação que, por sinal, é totalmente previsível), a narrativa teria ganho muito mais se tivesse optado desde o início pelo caminho realista ou mágico. Essa indecisão só transforma a história num vai e vem interminável de possibilidades que, auxiliados pela oscilação de tom e o número excessivo de personagens, faz com que a trama atire para todos os lados, sem nunca atingir o alvo.
Com diálogos risíveis (a conversa entre Whit e a mãe é pavorosa) e repletos de frases de efeito (por um momento, o espectador tem a impressão de que as falas são slogans criados por publicitários, mas, quando lembramos que boa parte dessas frases estão sendo ditas por personagens que, de fato, trabalham com propaganda, percebemos que nem mesmo o filme está se levando a sério) e com furos inaceitáveis (no terceiro ato, na cena da reunião, Howard sabe de coisas que não teria como saber), Beleza Oculta ainda tem a audácia de colocar outra virada de roteiro previsível (além da já mencionada) e forçada, já que pede ao espectador que acredite num lapso de memória do protagonista que é bastante inverossímil.
Uma moral distorcida e uma técnica opaca
No entanto, é mesmo a negligência com a moral distorcida da história que transforma o filme numa obra assustadoramente ruim. Como o leitor deve ter percebido ao ler a descrição da trama, os sócios e amigos de Howard agem egoisticamente, sem pensar nas consequências de suas ações. Ao decidirem contratar os atores, eles sabem que, além de sabotá-lo, isso afetará a já alterada sanidade do colega de trabalho, mas ainda assim seguem em frente. E o filme, não vendo problemas nas decisões tomadas pelos seus personagens, acha que essas ações são plenamente justificadas pelas dificuldades enfrentadas por cada um deles, nunca problematizando ou desenvolvendo com mais profundidade a questão. Depois disso, como é possível ter algum envolvimento emocional com pessoas tão mesquinhas?
Os aspectos técnicos de Beleza Oculta, por sua vez, são tão apáticos e problemáticos quanto o roteiro. Exibindo a mesma apatia vista em O Grande Ano e Um Divã Para Dois, David Frankel entrega uma direção vazia de imaginação e significado. Os planos são construídos com a única intenção de mostrar o mínimo necessário para o espectador acompanhar a trama. Em termos de enquadramentos, não há qualquer atenção com os detalhes e a composição envolvendo objetos em cena e a movimentação dos atores. Tudo é construído com o propósito maquinal de levar o filme adiante.
Já a fotografia de Maryse Alberti é escura demais e exageradamente contrastada. Ao passo que ressalta com eficácia os momentos mais densos, ela fica excessivamente pesada nos momentos mais leves. Ademais, embora o filme se passe no Natal (outro clichê insuportável), Alberti não consegue transmitir em instante algum a magia dessa época do ano. E, convenhamos, uma diretora de fotografia incapaz de ressaltar através da iluminação e planos algo que é tão mágico por si só como o Natal em Nova York é um atestado definitivo de incapacidade profissional.
Com a canastrice contumaz de Will Smith – insistindo na seara açucarada dos dramas inspiradores, como Um Homem Entre Gigantes – sendo imitada pelos outros membros do elenco (Kate Winslet, particularmente, está muito ruim), Beleza Oculta é a mais nova aposta do astro milionário. Porém, é tão ruim quanto os últimos projetos do ator. Caso o espectador realmente queira um drama natalino inspirador e humanamente profundo, recomendo que reveja – ou veja pela primeira vez – as duas obras mencionadas no primeiro parágrafo. Elas são infinitamente superiores e recompensadoras. Que saudade dos filmes de Frank Capra!