Batman vs Superman foi comentado no Formiga na Cabine!
Correr atrás do prejuízo quando seu concorrente vem se dando (muito) bem deve causar desespero em algumas pessoas, sobretudo se estivermos falando de produtos de milhões de dólares. A Warner, proprietária da DC Comics, jogou todas as suas fichas na criação de um universo cinematográfico compartilhado, procurando o mesmo caminho vitorioso da Marvel sob a batuta da Disney. Em 2013, O Homem de Aço repaginou o Superman e deixou esse caminho aberto, mas não foi o sucesso retumbante esperado, nem de longe, algo que aumentou as dúvidas do público sobre qual seria o próximo passo. Juntar o primeiro e mais famoso super-herói de todos os tempos com outro ícone da casa pareceu uma boa ideia, trazendo mais aparições familiares a reboque para os fãs de quadrinhos. Assim nasceu Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice).
No entanto, o que poderia ser a melhor notícia na vida de algumas pessoas causou desconfiança. Adiado em um ano já com a produção em curso e trazendo Henry Cavill de volta, que não havia convencido muito em sua estreia como Superman, além da escolha polêmica de Ben Affleck como Batman e uma – confirmada oficialmente – quantidade relativamente grande de outros heróis em participações menores, muita gente já profetizava o naufrágio da empreitada. O retorno de Zack Snyder, que está longe de ser uma unanimidade, como diretor não ajudou muito neste contexto, com trailers um tanto reveladores demais seguindo a prática cada vez mais comum entre os grandes estúdios.
Nada melhor do que conferir o produto pronto. Batman vs Superman é um filme que supera seu antecessor e abre possibilidades interessantes para os personagens da DC na telona. Partindo da destruição de Metropolis promovida no terceiro ato de O Homem de Aço, temos um Bruce Wayne revoltado com o ocorrido, dezoito meses depois ainda procurando todas as maneiras de deter o Superman, a quem considera uma ameaça. Este, por sua vez, já estabelecido como repórter no Planeta Diário e morando com Lois Lane (Amy Adams), continua tentando entender qual seu real papel em um mundo dividido entre pessoas que o repudiam ou que o veneram. Enquanto Wayne divide seu tempo entre uma cruzada violentíssima contra o submundo de Gotham City e a busca pelo minério que lhe daria uma vantagem física real contra o alter ego de Clark Kent, o jovem prodígio Lex Luthor (Jesse Eisenberg) tem sua própria agenda na destruição mútua dos dois heróis.
Ninguém precisa sequer ter visto algum trailer para saber disso: qualquer briga entre dois super-heróis termina em aliança contra um inimigo comum e aqui até o título já canta essa bola. Até chegar nisso, dá-lhe referências diretas a uma das HQ’s mais famosas do Morcego, com direito às mesmas frases em alguns momentos. Falando nisso, o Batman de Ben Affleck fará a alegria de quem curte muito a versão de Frank Miller, pois criou um tipo que não prima pela frieza e parece muito mais à vontade machucando (bastante) bandidos do que planejando ou refletindo sobre qualquer situação, mostrando-se muito dependente da figura do Alfred vivido por Jeremy Irons, mais ativo taticamente do que estamos acostumados. Aliás, essa roupagem dos dois ícones da DC deixa claro que preocupação com vidas humanas não é essencial.
A aparição da Mulher-Maravilha já não era surpresa faz tempo. Com um visual muito bacana, Gal Gadot, que também foi uma escolha criticada, não faz feio e tem uma boa participação no terceiro ato. Talvez a explicação para sua presença ao longo da trama seja conveniente demais, porém não é um grande pecado dentro daquilo em que o filme poderia ter um esmero maior: o roteiro. O contraste entre Superman e Batman praticamente inexiste fora da esfera dos superpoderes, afinal, Zack Snyder já havia entregue um semideus cabisbaixo e sombrio no filme de 2013, o que se mantém aqui com a volta do roteirista David Goyer, agora acompanhado de Chris Terrio. Goyer já provou que tem ótimas ideias, mas é sempre dependente de outro tratamento em seu texto, então é melhor nem imaginar o que teria saído sem a ajuda de Terrio, responsável por Argo, dirigido por Ben Affleck. Entre outras ressalvas, as inexplicáveis motivações de alguns personagens, como Lex Luthor, cujo discurso não chega a convencer e a direção de Snyder tem várias qualidades, mas sutileza ou mensagem nas entrelinhas não é uma delas.
Em um olhar geral, Batman vs Superman tem um bom ritmo, com cenas de ação que não se embolam atrapalhando a compreensão do espectador, mas sua primeira metade parece um pouco melhor que a outra. Ainda que retome seu fôlego chegando à grande luta do final, é a expectativa do estabelecimento deste pano de fundo que segura muito desta trama. Algumas frases soltas em diálogos capturam a atenção dos mais atentos, como Perry White dizendo a Clark Kent que “existia um ideal em 1938…”. Entendedores entenderão.
Nos quesitos mais técnicos, a criticada fotografia do filme anterior, acinzentando o filme de um personagem que tem pouco a ver com esse clima, aqui encontra uma razão de ser com o co-protagonismo de Batman, cortesia de Larry Fong. Patrick Tatopoulos retorna no desenho de produção, com a responsabilidade, entre outras coisas, de criar equipamentos críveis para Bruce Wayne, tarefa em que se saiu bem. A trilha sonora de Hans Zimmer e Junkie XL é muito boa, embora aplicada de forma equivocada aqui e ali, fazendo uma entrada rasgada em algumas cenas para forçar o clima. Snyder ainda pode melhorar como cineasta, mas uma montagem melhor elaborada, principalmente nos últimos minutos do filme, poderia valorizar bastante o produto final.
Pelo tamanho desta produção e a responsabilidade que carrega para o futuro destes personagens no cinema, o saldo é positivo. Batman vs Superman: A Origem da Justiça está longe da perfeição, conforme tudo o que você acabou de ler, mas tenta e arrisca em um caminho diferente para um gênero que já mostra um certo desgaste. Se a ambição desta construção trará bons e melhores frutos, só o futuro dirá. Ganharia muito apenas com um esforço maior no roteiro, mas passa rápido – o que é importante – e surpreende para um projeto que nasceu tão desacreditado.
(N.E.: Se você já havia lido esta crítica antes de 28/03, deve ter percebido que a nota aumentou em meio ponto. Não é uma prática comum, mas – após assisti-lo pela segunda vez – isso me pareceu necessário. Não houve edição alguma sobre o que já estava publicado e a opinião sobre os defeitos do longa se manteve, porém, a percepção de certos elementos levou a essa alteração. Justificar essa atitude, no entanto, traz alguns comentários com spoilers. Após o trailer abaixo estão algumas considerações que revelam muito sobre o filme, portanto, leia apenas se já o tiver visto.)
Comentários de Batman vs Superman com SPOILERS!
Em primeiro lugar, Batman vs Superman: A Origem da Justiça ainda dá a impressão de ser um filme com um potencial maior do que sua realização. Por outro lado, essa percepção não apaga os méritos de um blockbuster que, mesmo com Zack Snyder e David Goyer, conseguiu criar uma iconografia interessante para aqueles que se dispuserem a olhar mais de perto, gostando ou não do filme. Vamos à análise:
Começando com o sonho/flashback da morte do casal Wayne, os realizadores mandaram de cara a referência ao clássico A Marca do Zorro (1940), filme que a família assistiu na noite em que o pequeno Bruce ficou órfão. Detalhe herdado diretamente da HQ de Frank Miller, O Cavaleiro das Trevas, não é surpresa nenhuma estar ali. Aliás, não cabe elogiar o filme pelas rimas visuais bacanas que faz nesta sequência, colocando a queda dos corpos dos pais simultâneas à queda do cartucho da bala e do garoto descobrindo a caverna em um momento posterior, já que toda essa jogada narrativa também veio do trabalho de Miller. Novidade mesmo é o enquadramento evidenciar a fachada do cinema com Excalibur (1981) como filme a seguir, não apenas como marco cronológico para a idade de Bruce Wayne no presente. Evidentemente, o filme em questão trata do mito arturiano, aludindo a uma época de confusão pelos deuses abandonarem o homem.
Aí está insinuado o caminho da formação de Bruce Wayne/Batman como personagem. Zorro tem um significado óbvio, mas o jogo de pista-e-recompensa que a inclusão de Excalibur nos proporciona é vermos o indivíduo por todo o filme afirmando que Superman não é um deus e que tal coisa não existe. Ainda vai além, pois Batman usa uma armadura e, se não temos uma espada, a lança de kryptonita é fincada em uma pedra. O que justifica essa troca é lembrarmos da associação do Superman com Jesus Cristo, iniciada – martelada, na verdade – em O Homem de Aço, uma opção que particularmente não me agradou naquele filme por ser bem pouco sutil e até apelativa. Aqui, no entanto, Snyder banca sua opção e sai um pouco do lugar comum.
O artefato de kryptonita diz respeito a São Longino, descrito nos evangelhos como o romano que perfurou Jesus, já morto na cruz, com uma lança. O sangue respingado do corpo curou uma doença ocular do centurião, que converteu-se instantaneamente. A “conversão” de Batman não se dá através do sangue, já que ele não chega a perfurar o Superman, mas sua visão é curada, metaforicamente falando, e ele finalmente “aceita” o kryptoniano. Desnecessário citar a Trindade que forma-se com a chegada da Mulher-Maravilha na batalha final, não?
Dissertações sobre a Jornada do Herói aplicadas ao Superman seriam inúteis aqui. Como ele está praticamente vivendo o mesmo dilema já visto em O Homem de Aço, criando um déjà vu desagradável, podemos (devemos?) esquecer o filme anterior sem prejuízos e focar nas consequências de seus atos e seu sacrifício. Visualmente falando, chegamos a um detalhe muito interessante, já que no momento em que descem o corpo do herói tombado de um ponto mais alto (uma referência mais óbvia à crucificação), a composição ao fundo da cena forma duas cruzes separadas, aludindo aos dois ladrões crucificados ao lado de Jesus, tudo isso fotografado com um tratamento de cores que emula uma pintura barroca.
Muito provavelmente, um especialista deve enxergar muito mais coisas espalhadas pelo filme além das que citei, inclusive mais relações de Lois Lane, Mulher-Maravilha, Martha Kent e Lex Luthor com figuras bíblicas, mas existe mais uma característica pertinente, após o martírio do Superman, que acho válido citar. Como ele é Jesus nesta alegoria, Batman é São Pedro, que negou seu mestre, porém tornou-se o líder de seu movimento e propagador de sua palavra. Certamente não teremos doze membros quando a Liga da Justiça se formar, mas a relação entre esses dois personagens é bem clara neste sentido. Nem precisávamos dos últimos segundos do filme para esperar uma ressurreição.
Enfim, apreciando ou não essas associações assumidas do filme, elas estão ali e foram feitas com cuidado. Difícil imaginar que uma alegoria intencional da Paixão de Cristo estreia em um fim de semana de Páscoa por acaso, o que se prova mais uma estratégia bem sacada desta produção. Batman vs Superman: A Origem da Justiça tem mais a oferecer do que aparenta, apesar de seus defeitos evidentes.