Nos filmes de suspense, o que seria do whodunnit se o mordomo fosse sempre o culpado?
O assunto aqui é suspense. Dentro deste gênero, vamos partir do princípio de que o objetivo principal de uma obra classificada como whodunnit, seja na literatura policial (veículo que popularizou este subgênero) ou no formato audiovisual, é o de surpreender o público ao término de uma obra e revelar geralmente um culpado improvável.
Seguindo esta linha, antes de entrar com a proposta deste artigo, que é a de revisar ou recordar bons exemplos dentro neste tema ao longo da história cinematográfica, vale aqui uma descrição simples deste (se assim podemos dizer) estilo.
Popularizado na literatura durante a era de ouro das histórias de detetive na primeira metade do século 20 (Agatha Christie, Sir Arthur Conan Doyle, Raymond Chandler, Earl Derr Biggers, entre outros), a narrativa que traz o “quem matou” pode ou deveria seguir um padrão, mesmo que seu desenvolvimento seja alterado no percurso de uma obra. Sempre haverá um assassinato que irá desencadear um processo investigativo e ao final nos apresentará uma revelação surpreendente. Assim, está definido (de uma forma bem preguiçosa) o que seria um whodunnit, independente se o veículo é literário ou audiovisual.
Dentro desse tema, não há como deixar de lado os grandes autores dos romances de mistério, afinal boa parte dos roteiros que exploram este subgênero são adaptações de obras literárias. Algumas obras de mistério são inclusive exaustivamente adaptadas, como os contos protagonizados por Sherlock Holmes (campeão de versões para cinema e TV) e os livros da best seller Agatha Christie. Quantas vezes vimos Assassinato no Expresso do Oriente ser adaptado? Precisaria de mais de duas mãos para contar…
Obviamente existe um porquê simples de serem tantas vezes levados à telona ou telinha. Suas histórias são bons exemplos de romances de mistério e o apelo comercial é amplo. Boa parte dos contos de Holmes podemos classificar como whodunnit, mas Agatha Christie é campeã neste assunto. Possivelmente (não sei ao todo) todas suas histórias são whodunnits.
Assim, levando em conta somente obras audiovisuais, humildemente listamos uma sequência de 12 exemplos que ao longo da história representam com força este subgênero (não, não tem Hitchcock, pois esse estilo nunca foi o foco do Mestre do Suspense…).
Assassinato por Morte (Murder by Death) 1974
Uma boa forma de abrir esta seleção é começar leve com uma paródia ao próprio subgênero. Com ótimas sacadas, descontando piadas um pouco exageradas, este longa é uma honesta brincadeira com os grandes detetives da literatura e TV.
Aqui estão representados, de forma bem exagerada, personagens que refletem as peculiaridades de Hercule Poirot, Charlie Chan, Sam Spade, Miss Marple, entre outros. Todos eles são convidados para um jantar em uma mansão misteriosa por um excêntrico anfitrião para desvendar um assassinato que ainda irá ocorrer.
O tom é de comédia escrachada que funciona em boa parte, se você comprar a ideia. O elenco estelar ajuda muito nesta paródia detalhista que, inclusive, finaliza com uma revelação final quase interminável (desculpem o spoiler, mas fique tranquilo porque não irá estragar sua experiência)…
O Cão dos Baskervilles (The Hound of Baskervilles) 1959
Difícil falar sobre um tema que envolve por essência filmes mistério e suspense e não ter um exemplo que traga a dupla de detetives mais famosa da literatura, Sherlock Holmes e Dr Watson. Pois bem, vamos de um de seus clássicos contos…
Apesar de incontáveis adaptações para o cinema e TV, a escolha aqui é de uma boa produção da Hammer (sim ela mesma, a famosa produtora britânica que é mais lembrada pelas obras de orçamento modesto dentro do gênero terror), que traz uma história da dupla que se encaixa melhor no estilo whodunnit, afinal muitas das narrativas de Holmes e Watson não seguem a linha de revelação final. Em boa parte já temos o vilão identificado bem antes do fim.
Entre os bons valores desta obra está o evidente respeito e carinho maior com o papel do Dr Watson (personagem muito mais útil para Holmes e menos ingênuo em relação ao interpretado por Nigel Bruce na versão de 1939) e a notável ambientação fantasmagórica típica da Hammer que faz um bom casamento com a ideia da trama.
Se compararmos com as obras que a Hammer produzia na época, este longa segue outro rumo. O foco da produtora era explorar histórias sobrenaturais e, desta forma, a identificação do público não foi satisfatória. Assim, O Cão dos Baskervilles fracassou comercialmente, mas isso não importa hoje. Esta versão tem seu valor e ver Peter Cushing em qualquer papel de destaque já vale a sua atenção.
A Mansão da Meia Noite (House of the Long Shadows) 1983
No início dos anos 1980, a famosa e (porque não) simpática Cannon Films, que nos trouxe tantas obras de qualidade duvidosa naquela década, resolveu investir no clima nostálgico de horror com cara de anos 50 e 60. Ou seja, a brincadeira era criar uma história a partir de uma casa mal-assombrada, somando a presença de velhos ícones do suspense e terror. Assim, recrutaram Vincent Price, Peter Cushing, John Carradine e Christopher Lee no mesmo ambiente.
Mas antes, engana-se quem pensa que esta história se trata de uma narrativa de horror. É um belo suspense com ar de mistério constante que nos proporciona um curioso whodunnit.
Bebendo na fonte de um romance de Earl Dear Biggers chamado Seven Keys to Baldpate, o autor das histórias do detetive Charlie Chan (olha aí mais uma conexão com o tema deste artigo), a trama traz um escritor que faz uma aposta com seu editor. Escrever um romance em 24 horas, com a condição de que tivesse um local apropriado para a escrita e concentração. O local é uma casa abandonada e ele irá descobrir que não estaria tão abandonada assim (claro).
O longa tem algumas falhas (você não vai dar tanta importância) e um pequeno exagero nos graciosos twists finais, mas tem qualidades perceptíveis. Encará-lo como uma bela homenagem aos “monstros” do cinema de terror deixa a experiência ainda melhor (a homenagem é tão evidente que Price, Cushing e Lee têm entradas triunfais em suas primeiras aparições no longa).
Se você tem coração, não tem como não gostar desse filme…
Os Sete Suspeitos (Clue) 1985
Mais um whodunnit em tom de comédia. Em um estilo menos pastelão, se compararmos com o Assassinato por Morte citado antes, mas cheio de gracejos.
Com produção apurada e ótimo elenco, este longa traz boas curiosidades. Sua história leva como inspiração o jogo de tabuleiro Detetive (Clue) e o roteiro lembra a estrutura do próprio Assassinato Por Morte, porém, de uma forma mais balanceada entre a comédia e o suspense.
A obra traz elementos tradicionais do jogo, como as armas, os personagens e os cômodos de um determinado local onde será necessário desvendar o mistério. Na trama, pessoas ligadas de alguma forma são convidadas para um jantar em uma mansão sombria. Assassinatos ocorrem e todos serão suspeitos. Como referência ao jogo, cada um é tratado por um pseudônimo (Coronel Mostarda, Dona Branca, Dona Violeta e por aí vai).
O longa oferece boas piadas, momentos de suspense e um clima despretensioso que deixam a experiência agradável. Além de trazer a ideia, nada convencional, de oferecer ao público três revelações diferentes ao final. Formato que parece exagerado, mas encaixa bem com a proposta cômica do longa.
Merece um lugar de destaque nesta lista e, se um whodunnit recreativo for a sua praia, é mais uma boa opção.
Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express) 1974
A rainha do estilo “quem matou?”, Agatha Christie, obviamente, tem que estar presente nesta lista. E aqui vai a sua história mais adaptada, inclusive recentemente com a superprodução dirigida por Kenneth Branagh. Porém, esta versão de Branagh, e todas as outras anteriores, não conseguiram bater a qualidade da obra dirigida por Sidney Lumet em 1974.
Indicado em algumas categorias do Oscar na época e com elenco cheio de estrelas, como Sean Connery, Lauren Bacall, Ingrid Bergman, Jaqueline Bisset, Anthony Perkins, Vanessa Redgrave e Albert Finney, o longa esbanja elegância e traz um belo trabalho de ambientação e figurino. Tudo bem conectado com a narrativa elaborada de investigação, onde todos os presentes são suspeitos por um crime cometido ao longo da história e possuem motivos para tal ato (clássica estrutura da autora).
Lumet, mesmo tendo uma história que em boa parte do tempo envolve os interrogatórios do detetive belga Hercule Poirot, consegue prender a atenção até a revelação (hoje já manjada) surpreendente ao final…
Seis Mulheres para o Assassino (Sei donne per l’assassino) 1964
Apesar do lado violento bem evidente em suas histórias, o giallo (subgênero italiano de suspense muito popular nos anos 60 e 70) merece ter um representante nesta lista. E neste ranking, ao invés de trazer um longa dirigido por Dario Argento, que talvez seja o diretor que mais explorou o giallo, elegemos aqui Seis Mulheres para o Assassino, o primeiro em cores (e um dos melhores) dirigido pelo mestre do terror Mario Bava.
O giallo, que catapultou a carreira de diretores como o próprio Dario Argento e inspirou outros tantos, tem em sua estrutura a investigação de crimes que, apesar de utilizar diferentes elementos, contém ligação clara com os whodunnits ao seguir o padrão da revelação de um assassino ao final, geralmente com a intenção de ser surpreendente.
E neste longa fascinante, Bava brinca com as mais variadas cores como poucos e nos hipnotiza com cenas de enquadramento complexas, fazendo com que a história chegue a um nível bem acima de uma trama de mistério comum. Se você ainda não viu um giallo, comece por esse…
O Nome da Rosa (The Name of the Rose) 1986
Este longa é um exemplo que foge um pouco do whodunnit convencional e traz camadas mais profundas e reflexivas, explorando temas distintos, mas ainda assim leva em sua estrutura a investigação e revelação final. Merece também destaque nesta lista.
Baseado na obra de Umberto Eco (leia o texto sobre o livro), O Nome da Rosa se tornou um grande sucesso na época de seu lançamento, público e crítica, e seu acerto está em uma história que equilibra bem o mistério de uma série de assassinatos com temas históricos que envolvem principalmente o jogo de poder e controle da igreja, através da visão crítica sobre um monastério decadente na Itália Medieval.
A química da dupla Sean Connery e Christian Slater vai muito bem, mas Ron Perlman, que interpreta o corcunda, rouba as cenas em que aparece.
Testemunha da Acusação (Witness for the Prosecution) 1957
Com ninguém menos do que Billy Wilder (de Crepúsculo dos Deuses) na direção, mais Agatha Christie na lista.
Podemos afirmar que esta história é uma referência de whodunnit pela estrutura e desfecho revelador (para muitos um dos mais surpreendentes), mas o filme também é, sem dúvida, uma referência em outro subgênero (se assim podemos classificar), os filmes de tribunal.
Wilder faz um trabalho bem eficiente com os ótimos diálogos e combina a aura de mistério com toques cômicos cheios de ironia, que se encaixam bem com a trama. A experiência é leve e Testemunha da Acusação é imperdível se você aprecia o estilo. Certamente está na lista das grandes obras do diretor.
Laura (Laura) 1944
Um filme classificado como film noir tem diversos trademarks como a femme fatale, a fotografia sombria, os personagens ambíguos, entre outros, mas sua estrutura normalmente difere de um whodunnit convencional e caminha por múltiplos estilos sem precisar entrar em um padrão de composição.
Porém, ainda sim, existem obras, como Laura, que se encaixam bem na linha “quem matou?’ e, por ser primoroso, merece um ótimo lugar nesta humilde lista. Carregado de estilo e elegância, Laura é, sem sobra de dúvida, um filme marcante, além de ser um clássico noir que não esconde seus elementos tradicionais.
O tema central deste longa, dirigido pelo grande Otto Preminger, é a própria investigação sobre a morte de Laura. No entanto, mesmo que este seja o ponto de partida da narrativa e o caminho para conhecermos as facetas dos personagens até a revelação final, o mais interessante deixa de ser a investigação e sim os diversos componentes noir que fazem este filme ser especial. Se ainda não o viu, veja o mais rápido possível…
E não Sobrou Nenhum (And Then There Were None) 2015
Terceira e última adaptação presente nesta lista da rainha do crime Agatha Christie (afinal ela merece por ser especialista no assunto), desta vez chegou a hora de trazer sua mais famosa história, O Caso dos Dez Negrinhos, ou se preferir, E Não Sobrou Nenhum.
Mesmo adaptado inúmeras vezes para a telona, sua melhor versão, que merece o terceiro lugar aqui, apareceu recentemente em formato de minissérie realizada pela BBC em 2015. Convenhamos que todas as adaptações anteriores não são filmes memoráveis ou extremamente fiéis a história (há quem fale sobre uma elogiada versão russa, mas poucos a conhecem).
A minissérie resolveu fazer algo que as outras versões não haviam arriscado. Ser o mais fiel possível ao final melancólico do livro. As versões anteriores, como a mais lembrada dirigida nos anos 40 por Rene Clair, foram fundamentadas na peça que a própria Agatha Christie alterou para o teatro e trazem um desfecho menos traumático.
O clima sombrio do livro está bem presente nesta obra da BBC, que elimina até um lado razoavelmente cômico presente no filme de Clair. Vamos combinar que a história merecia seriedade e mais proximidade com o lado negro da Força, afinal acompanhamos um grupo de 10 pessoas que são convidadas para um final de semana em uma ilha isolada do mundo, para que sejam assassinadas uma a uma, até termos revelado o autor do plano.
Os responsáveis pela minissérie conseguiram trazer muito bem a atmosfera sinistra do enredo e ainda acrescentaram ao mistério toques de suspense psicológico e terror. Esta é uma versão que vale a pena ser mais divulgada, não somente aos fãs da autora, mas também para aqueles que apreciam uma narrativa bem estruturada e um final surpresa que não decepciona.
Os Suspeitos (The Usual Suspects) 1995
Chegando quase ao final da lista, é hora de recordar uma obra marcante da década de 1990 que não só pergunta quem matou, mas também questiona: quem diabos é Keyser Soze?
Indo de trás para frente, no melhor estilo Cidadão Kane, Os Suspeitos se desenrola através do interrogatório do criminoso Verbal Kint (Kevin Spacey) que é um dos dois sobreviventes de um massacre. Preso, ele vai contando sobre sua parceria com mais 4 criminosos, mortos na tragédia, e os caminhos que os levaram a este banho de sangue.
O diretor Bryan Singer, que se tornou especialista em X-Men, foi catapultado ao estrelato com Os Suspeitos, muito pela direção segura, mas talvez tenha consumido boa parte dos seus cartuchos com este longa, sem repetir um trabalho tão competente como esse nas realizações seguintes.
Inspirado na ambientação dos filmes noir, junto a uma trilha sonora que também remete a este subgênero policial, Singer mostra uma habilidade enorme na montagem de uma trama complexa que, mesmo alternando períodos distintos, em nenhum momento perde o ritmo.
O time principal de atores tem química boa e a edição mantém as alternâncias de tempo bem fluidas. Fica claro que Singer tinha em mãos um roteiro muito bem escrito, mas não podemos tirar o seu mérito de fazer tudo isso funcionar.
O Fim de Sheila (The Last of Sheila) 1973
Chegamos ao topo do ranking. E por que este filme desconhecido do público em geral assumiu o posto número 1?
Porque além de não falhar na proposta de um whodunnit clássico com assassinatos, investigação onde todos são suspeitos, pistas falsas, flashbacks, reviravoltas e elenco de ponta, tem um roteiro sofisticado que nos mantém fixos na tela e ainda acha espaço para um olhar bem crítico a própria indústria cinematográfica.
Para quem não sabe do que a obra trata, logo de cara acompanhamos na trama o “fim da Sheila”, após ser atropelada ao sair de uma festa por um assassino não desvendado. Um ano depois, seu ex-marido, um excêntrico produtor cinematográfico, convida alguns amigos do casal que estavam presentes na trágica noite (todos ligados ao cinema) para uma semana em seu luxuoso iate. Lá ele os atrai para participar de um jogo misterioso, porém sua verdadeira intenção é expor o assassino de Sheila, que está entre eles.
O surpreendente roteiro entremeado por diálogos inteligentes e recheado de humor negro tem a mão de Anthony Perkins (ele mesmo!). Um ótimo trabalho que o público não apreciou como deveria, mas com o tempo o filme adquiriu um relativo status de cult. Bem pouco no Brasil, mas curiosamente chegou a ser veiculado na televisão brasileira tempos atrás (Record e a extinta Rede Manchete) sem nunca ter sido lançado em DVD.
Chegamos ao final…
E com O Fim de Sheila, que representa muito bem o subgênero em foco neste artigo, fechamos esta modesta lista, que tem somente a intenção de ser mais uma lista, muito longe de querer ser definitiva, até porque existem diversos outros exemplos que exploram este tema.
A esperança é que, se você aprecia este subgênero, tenha se interessado por alguma das obras listadas (caso não as tenha visto). Neste caso, o trabalho valeu a pena…