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Uivo Libertário – A Trilogia Psicodélica de Tinto Brass!

Hoje esquecido, o trabalho de Tinto Brass ainda é extremamente relevante

A grande maioria das pessoas conhece o diretor italiano Tinto Brass por dois motivos: como diretor do filme Calígula do qual ele se envergonha de ter participado da equipe, por não concordar com a inserção de cenas de sexo explícito na pós-produção – e pelas produções eróticas que ele produz e dirige desde o final da década de 70.

tinto brass

Tinto Brass!

Mas espera um pouco: como alguém que não concordou com cenas de sexo em um de seus trabalhos se torna um dos nomes mais famosos do cinema erótico? É momento de rebobinar a fita. E se o prezado leitor não sabe o que isso significa, procure um dicionário ou pergunte para alguém com mais de 30 anos.

Brass, que nasceu em 26 de março de 1933, na cidade de Milão, começou como assistente de direção de nomes como Alberto Cavalcanti e Roberto Rossellini. Sua estreia em longas-metragens se deu em 1963, com o drama Quem Trabalha Está Perdido (Até o Fim do Mundo), onde ele já mostrava ter estilo visual e criatividade para posicionar a câmera.

Filmado em preto e branco, o filme acompanha um dia na vida do jovem Bonifácio, que precisa decidir se aceita ou não uma proposta de emprego. A possibilidade de mudar de vida faz com que o personagem relembre amores, descobertas e traumas, tudo levado para a telona com ares de Nouvelle Vague, uma das influências descaradas do então iniciante diretor.

Três anos depois, Tinto Brass daria sua contribuição para um dos subgêneros mais rentáveis que a Itália já viu. O spaghetti western Yankee segue as regras impostas pelo ciclo de cinema da época, mas o diretor faz questão de já deixar claro sua assinatura, ao contar a história de um pistoleiro que decide assumir o posto de líder de uma quadrilha ao saber que cada um deles vale uma pequena fortuna em recompensas.

Revisto hoje, longe da avalanche de lançamentos que ocorriam todas as semanas nos cinemas, Yankee envelheceu bem, e merece estar presente na lista dos spaguetti que merecem ser assistidos. Apesar de bem quisto na indústria cinematográfica, Brass ainda guardava segredos que seriam revelados em seus três longas seguintes, sem dúvida os mais experimentais e criativos de sua carreira.

A trilogia psicodélica

1967. Um ano inesquecível para o cinema por muitos motivos, entre eles a chegada da geração da Nova Hollywood, e o lançamento de clássicos como A Primeira Noite de Um Homem, de Mike Nichols, e A Bela da Tarde, de Luís Buñuel. Por mais que estivesse inserido em um modo diferente de fazer cinema como era a indústria italiana naqueles tempos, Brass absorveu esses novos ventos que chegavam da América e da França e incorporo-os às suas produções, sem esquecer de colocar uma pitada de transgressão.

Nascia assim Com O Coração na Garganta (também conhecido sob o título de Eliminação), um giallo que inaugura o que podemos chamar de Trilogia Psicodélica do diretor. A trama, que envolve assassinato, mentiras e muitas reviravoltas, bem ao gosto das histórias saídas das páginas amarelas dos livros baratos, é apresentada de maneira singular. Uma montagem mais preocupada com ritmo do que com ordem dos fatos e uma trilha sonora pop.

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Pôster italiano de Com o Coração na Garganta!

A presença da femme fatale Jane Burroughs, interpretada por Ewa Aulin, pode lembrar alguns exemplares do cinema noir americano, mas a referência mais explícita é mesmo Blow-Up, do mestre Michelangelo Antonioni, talvez o retrato mais conhecido da Swinging London.

Brass brinca com onomatopeias que surgem em cena, imagens de quadrinhos de Guido Crepax (cujas moças inspirariam o comportamento das personagens femininas da fase mais erótica do diretor) e pop art sem limites na direção de arte, enquanto quebra a quarta parede e convida o público a entrar em seu universo alucinógeno. Mais que assistir, os filmes dessa primeira fase de Tinto Brass são para serem experimentados sem amarras.

O filme do meio da Trilogia Psicodélica é também a primeira aparição da “mulher brassiana”. Explico: a sexualidade exacerbada e o apreço por filmar corpos nus de Tinto Brass acabaram por levá-lo ao cinema erótico nos anos 90 e, por puro preconceito, afastado as espectadoras femininas de suas produções.

No entanto, é a partir de Negro Sobre Branco, de 1969, que o cineasta passa a dar atenção para as personagens femininas, retratando-as como donas do próprio desejo e bem resolvidas com seus corpos. Quem coloca as grades é a sociedade patriarcal.

A protagonista, Bárbara (a ótima Anita Sanders), reprime a própria sexualidade devido ao marido conservador e a cobrança por ser uma dona de casa exemplar e recatada. Durante um passeio pela cidade, ela deixa sua imaginação falar mais alto e imagina uma série de encontros sexuais, retratados com altas doses de psicodelia por Brass.

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Anita Sanders!

E é nessas cenas que ele insere sua crítica política e social, exaltando o eros feminino, e mostrando como o pensamento machista castra a realização plena dos desejos das mulheres. Bárbara usa suas fantasias para livrar-se da culpa que foi plantada nela e em todas as mulheres de seu tempo, e que é reproduzida, para a nossa tristeza, até hoje por homens e mulheres.

Tinto Brass faz a sua parte para o enaltecimento do movimento feminista, sem precisar ser panfletário ou didático. É cinematográfico, com um C bem maiúsculo. E ainda fala sobre questões raciais, critica a Guerra do Vietnã e o catolicismo, sem deixar de lado o lirismo de suas imagens.

O uivo da libertação

Depois de Com o Coração na Garganta e Negro Sobre Branco, parecia que a criatividade de Tinto Brass estava esgotada. Ledo engano. Os dois primeiros longas foram um ensaio para o transgressor O Uivo. Lançado em 1970, e nunca lançado comercialmente no Brasil – apesar de ter sido um dos preferidos do grande Carlos Reichenbach – é uma explosão visual e de conteúdo, que supera as propostas de nomes como Pier Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard.

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Cena do impactante O Uivo!

Estilo teatral nas interpretações, críticas fortes à sociedade burguesa e uma ode à liberdade. Filme-delírio, filme-manifesto, tudo isso ao mesmo tempo agora! Tinto Brass o definia como uma história de amor, e O Uivo o é, de certa forma. Anita, a protagonista, abandona o noivo no altar e sai pelo mundo ao lado de um sonhador sem nome nem documento. Exageros, situações nonsense, diálogos ditos aos berros, descoberta, surrealismo, experimentação.

Para admirá-lo na sua totalidade é preciso uma boa dose de desprendimento, assim como quando nos deixamos levar pelos versos do poeta Allen Ginsberg, que também teve o seu O Uivo, o poema:

Eu vi os expoentes da minha geração, destruídos pela
loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada

em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo
contato celestial com o dínamo estrelado da
maquinaria da noite,

que pobres esfarrapados e olheiras fundas, viajaram
fumando sentados na sobrenatural escuridão dos
miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando
sobre os tetos das cidades contemplando o jazz,

que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado
e viram anjos maometanos cambaleando iluminados
nos telhados das casas de cômodos,

que passaram por universidades com olhos frios e
radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz
de Blake entre os estudiosos da guerra,

que foram expulsos das universidades por serem loucos
& publicarem odes obscenas nas janelas do crânio

Um legado além do seu tempo

É um tanto triste perceber que, para alguns, o cinema de Tinto Brass se resuma e permeie a memória dos espectadores pelo peitos e lábios que mostrou sem pudor. Não que isso não tenha o seu valor. Mas um corpo nu num filme de Tinto Brass não está ali apenas para acender a plateia. Nas palavras do próprio, seu cinema não está interessado em ereções, mas em emoções.

E despidos dos panos que nos cobrem para encarar a batalha diária que é a vida, somos muito mais fiéis às nossas vontades, mais sinceros com nós mesmos e com o outro. Tinto Brass presenteou o mundo com uma liberdade tão importante quando a de outros nomes do cinema, mas poucas são as listas que lembram suas obras como parte da revolução cultural e comportamental que foram os anos 60.

Ainda dá tempo de exaltar as mulheres nuas e livres de Brass, que lutaram contra nazistas e foram em busca de prazer, que desistiram do casamento, mas não do amor, que foram retratadas no auge da beleza sem amarras, fazendo das pequenas imperfeições uma assinatura, um orgulho.

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