Mizoguchi e a condição feminina na cultura japonesa
Baseado no romance de Yoshiko Shibaki, Susaki no Onna, A Rua da Vergonha (Akasen Chitai, 1956, “Distrito da Luz Vermelha”) foi o último filme realizado pelo mestre do cinema japonês Kenji Mizoguchi (que faleceu, no mesmo ano, aos 58 anos lutando contra a leucemia) e que encerra a Trilogia das Gueixas.
Ambientado na cidade de Tóquio, adentramos o bairro da prostituição local – mais precisamente, no bordel chamado “Terra dos Sonhos”. Como em seus filmes precedentes, Mizoguchi intersecta uma série de situações ligadas a diversas personagens – o que nos arrebata a conhecer a vida, caminhos e tragédias que levaram as cinco protagonistas da trama à prostituição.
Yumeko é a sonhadora que aguarda ansiosamente o momento para abandonar o bordel para viver ao lado do filho que, agora adulto, cuidara da mãe durante a velhice. Yorie deseja se casar com um cliente que lhe prometera amor e um lar. Hanae sustenta o filho e o marido tuberculoso que está desempregado. Yasumi economiza e empresta dinheiro (com juros), com o objetivo de um dia tornar-se dona do próprio negócio. Miki é rebelde, audaciosa e a mais ocidentalizada do grupo (informação deveras importante, que será explanada adiante). Usa rabo de cavalo e calças, ao invés do das vestes tradicionais.
A Tragédia Feminina de Mizoguchi, uma triste realidade
Recorrente em sua filmografia, as mulheres de Mizoguchi atravessam caminhos tortuosos, e estão fadadas a tragédias causadas pelos homens que as rodeiam. Lutam e se sacrificam pelos homens que amam. Mizoguchi não apenas ilustra a condição feminina, mas também levanta importantes críticas sobre a exploração, brutalidade masculina (física e psicológica), relações de poder (política e econômica) e objetificação da mulher na sociedade nipônica.
Tudo isso através de uma fotografia “anti-voyeurística”, com pleno uso da profundidade de campo. Como mencionado pela especialista em cinema japonês Maria Roberta Novielli, no livro História do Cinema Japonês, o estilo adotado pelo diretor nos afasta daquele momento, para não explorar o sofrimento das mulheres – recurso esse que ele já utilizava em outras obras, como por exemplo, em Os Amantes Crucificados (1953), quando esconde a tristeza da personagem ao ler um conteúdo de uma carta atrás de roupas penduradas em um varal.
Assim, a tragédia das personagens nos melodramas do diretor é inevitável, o que reforça a verossimilhança com a realidade (infelizmente) feminina. As cinco prostitutas de A Rua da Vergonha têm o destino traçado de forma drástica, e são humilhadas durante todo o processo.
O filho envergonhado pela maneira como a mãe ganha a vida a renega. O marido tuberculoso é suicida, e cobra da esposa que o sustenta a permanência em casa, mas não nega o trabalho quando precisa de dinheiro. O cliente-amante de Yorie apenas quer uma esposa para serviços domésticos (o que a torna uma escrava contemporânea, como a mesma descreve). Um cliente de Yasumi tenta matá-la quando descobre que a paixão não é recíproca, e que há apenas o interesse econômico. Miki recebe a visita do pai (um rico dono de uma empresa importante na cidade de Koichi) e nos leva a descobrir a razão de sua rebeldia: a mãe adoeceu quando descobriu a infidelidade do marido, e a amante que este sustentava no prostíbulo da cidade.
Trama extremamente triste, é inevitável derramar uma lágrima. Na última cena somos apresentados a iniciação de uma garota à prostituição (um choque no epílogo, que mostra mais uma vez a fatalidade da mulher tendo que seguir o que lhe foi imposto) que, através de uma voz baixa e trêmula, escondida entre as colunas do estabelecimento, chama pelos homens que vê caminhando pela rua. Um meio de encerrar a carreira de maneira crítica e coerente com toda a sua filmografia.
A Libertação Feminina através do Gendaigeki e a influência do Ocidente
Há claro um destino negativo traçado para as personagens em A Rua da Vergonha. Entretanto, é reconhecível que o gênero trabalhado por Mizoguchi, o gendaigeki (filmes ambientados no mundo contemporâneo) traz mulheres mais fortes, destemidas e emancipadas do que o gênero jidaigeki (filmes ambientados no passado, em alguns casos, históricos), onde elas reagem de maneira sutil, e a submissão da mulher é trazida através de antigos valores feudais.
Os valores ocidentais importados após o início da Era Meiji e, posteriormente, após a ocupação estadunidense (o qual muitos historiadores acreditam que também tenha sido crucial, como é o caso de Kenneth Henshall) no final da Segunda Guerra Mundial ajudam a entender o processo de libertação da mulher, após um longo regime dominado pela militarização e saudosismo do sistema feudal.
A “democratização” levada a cabo pela política de ocupação considerava a mulher japonesa vítima de uma herança passada, colocando-a em posição submissa ao homem em todas as esferas, sendo na social, política, privada ou pública. Eram diversos costumes e hábitos a serem modificados, como, por exemplo, o casamento arranjado. A ocupação norte-americana se esforçou então para alterar o quadro vivido pela mulher japonesa.
A mulher japonesa, diferente dos anos anteriores à guerra na década de 1950, aos poucos recebe certa liberdade dentro do cinema japonês – refletindo a posição de uma mulher contemporânea, e desligando-se das tradições feudais, um dos elementos causadores de sua inteira submissão ao homem. Aqui vale destacar que a ocupação não é um mérito, muito pelo contrário. Mas nos ajuda a entender esse processo em todo cinema japonês.
A personagem da excelente atriz Machiko Kyo, Miki (nome que é questionado no filme por um dos clientes como uma assimilação ao famoso rato dos estúdios Disney) é a forte e rebelde garota influenciada pela cultura ocidental. Mas essa influência apresentada pelo cinema de Mizoguchi realmente viria da ocupação norte-americana?
A congênere de Miki é Ayako, de Elegia de Osaka (1936). No filme, Ayako deixa tudo para trás (até mesmo larga o homem que ama) em prol do sustento do pai e irmão, tomando outro homem como amante. A personagem se transforma em uma moga (da expressão em inglês, modern girl, termo usado para nomear as mulheres que se comportavam à moda ocidental, com cabelos curtos, saia pelo joelho, salto altos, e, portanto, mais liberais em relação ao modelo feminino clássico japonês). Com Ayako, Mizoguchi transmite o realismo vivido por qualquer mulher japonesa, assim como Miki de A Rua da Vergonha.
Esse detalhe nos mostra que a ocidentalização como processo libertário surge fortíssimo antes mesmo da ocupação norte-americana. Valores de liberdade, movimentos libertários (como o das sufragistas) e a disseminação de ideologias socialistas pelo mundo a partir do século XIX, é uma das chaves para entender o processo da emancipação feminina no Japão.
Dentro dessa discussão há uma segunda questão: Qual seria a origem da preocupação de Mizoguchi à condição feminina no Japão?
Mizoguchi e as Mulheres
A relação de Mizoguchi com as mulheres é extremamente forte. Foi chamado pela crítica internacional de o “cineasta feminista”, pela aproximação do diretor às causas femininas, e preocupação com a condição da mulher japonesa na época. Essa posição do diretor tem duas explicações possíveis; a primeira de cunho pessoal, e a segunda, política.
Nascido no século XIX e de família pobre, Mizoguchi foi criado pela mãe, e viu sua irmã ser vendida como gueixa – futuramente, ela pagaria os estudos do cineasta. Desde cedo Mizoguchi venerava as mulheres que faziam parte de sua vida, e via nos homens um símbolo de opressão (também tinha muitos problemas com o pai).
Já a segunda explicação aparece quando é contratado pela Nikkatsu (importante produtora japonesa). Na época, existia um diretor focado em produções com personagens masculinos. Mizoguchi recebeu a ordem então para produzir filmes com personagens femininas, indo na contramão do diretor veterano da produtora.
O interessante é notar que, independente da explicação, Mizoguchi tinha um carinho especial pelas mulheres. Sua preocupação o levou a denunciar abusos e exploração feminina. Até mesmo em outros filmes do diretor, como é o caso de Crisântemos Tardios (1939), em que o protagonista é um homem, percebemos uma abordagem sutil da feminilidade, através da sensibilidade artística do personagem (um ator de teatro kabuki).
Mesmo com o compromisso de Mizoguchi em relação a condição feminina, e com essas novidades as mulheres ainda eram representadas pelos homens no cinema japonês. Ou seja, eram representadas por diretores, e não diretoras. E a representação é um importante ponto para iniciar uma nova discussão sobre a emancipação feminina. E você leitora e leitor, qual a sua opinião sobre a representatividade da mulher no cinema?
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