Ao se colocar o Mal (assim mesmo, com letra maiúscula) e o nome de William Friedkin na mesma frase, o filme O Exorcista (The Exorcist, 1973) surge como referência-mor. Idolatrada pelo público e pra lá de respeitada pela crítica, a produção foi uma das raras experiências do terror indicadas ao Oscar e a tornar-se objeto de análises de peso, além, claro, de proporcionar um delicioso desconforto real aos espectadores. O que choca em O Exorcista, não é apenas o demônio que atormenta a pobre Regan, desafiando nossa moralidade íntima. Não é também unicamente o medo infantil íntimo que sentimos dos perigos das sombras. O que fascina nesse filme é algo que marca quase toda obra de Friedkin, uma característica disfarçada e incômoda, a qual receamos de que também esteja aqui, do lado de fora da tela. Para o diretor, o Mal esconde-se dentro de nós, e lidamos com ele da maneira mais pessoal possível, seja pela religião, pelo trabalho, pela moral ou pela total subversão. Essa ameaça interior nos consome, nos corrompe e, quase sempre, nos vence. Na obra deste instável diretor – responsável por algumas joias do cinema e por outras um tanto dispensáveis – o Mal interno pode vir surgir através de uma metáfora simplista – como em Possuídos (Bug, 2006), onde o perigo parece estar em cada detalhe do ambiente – ou mesmo na sua face mais clássica, o diabo.
No premiado Operação França (The French Connection, 1971), temos um thiller de ação envolvente do começo ao fim, consagrado, entre outros fatores, pela complexidade dos personagens. Na tela, o maior inimigo de Popeye, o policial durão interpretado por Gene Hackman, não é o mega-traficante ou o assassino, mas o próprio Eu do personagem e o peso do passado, que o leva assumir características autodestrutivas e a assumir uma personalidade semelhante aos criminosos que persegue. Popeye é um anti-herói sem limites morais, que atira pelas costas, é incapaz de ter uma relação afetiva e não dá a mínima para o bem comum. Seus impulsos são contrabalançados apenas pelo parceiro Cloudy (Roy Scheider), igualmente ambíguo, porém mais seguro de si. Aliás, ambiguidade é a palavra-chave para o diretor.
No clássico O Exorcista, qual o pior demônio enfrentado pelo padre Karras: aquele que atormenta a pobre Regan ou próprios que carrega em si, a todo momento refletidos da menina possuída a sua frente? Repare nas referências sobre a mãe de Karras provocadas pela demoníaca Regan: são torturantes embate entre o padre e seus pesadelos internos. Até que ponto a culpa, o remorso, a insegurança, a fragilidade e o medo podem nos transformar perante nossos desafios? Não esses os maiores obstáculos a cada batalha? O desfecho do personagem é bastante sugestivo quanto ao resultado desse conflito.
Veja o caso de Steve Burns, brilhantemente personificado por Al Pacino em Parceiros da Noite (Cruising, 1980), um policial mergulhado em mundos obscuros, tanto na vida pessoal, quanto na missão a qual é incumbido: investigar uma série de assassinatos de homossexuais em uma das regiões mais violentas da cidade. O Mal, nesse caso, não está apenas no criminoso, mas nas dúvidas e sentimentos conflitantes que atormentam Burns de forma crescente. A angústia sentida pelo policial é subjetiva e contagiante. O filme deixa muitas dúvidas do ar, produto de um dos mais ambíguos filmes de Friedkin. Algumas dessas questões, no entanto, estão presentes em quase toda filmografia do diretor: será que nós sabemos quem somos de verdade? Será que sabemos de fato o que somos capazes de fazer ou não? Quais são nossos limites? São perguntas que poucos ousam responder.