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Em M, o vampiro de Dusserldorf (1931), outro clássico de Lang e seu primeiro filme falado, temos outro exemplo, citado no artigo anterior, de como um inimigo comum e odioso pode transtornar uma multidão e fazer dela própria cúmplice de seus atos. O filme depõe sobre os lados sombrios do ser humano e da sociedade, com a corrupção infiltrada em todos os níveis da estrutura social, em que assassinos, mafiosos, assaltantes, policiais, políticos e cidadãos comuns se confundem em seus papeis. A massa, tomada pelo medo, busca sempre apontar culpados em meio a instabilidade que reina. Peter Lorre, o assassino, assume a posição do mais detestável dos criminosos, a de matador de crianças. Sendo caçado por toda cidade – pais, moradores, bandidos e policiais – foge apavorado sem saber o que poderá lhe acontecer.
As cenas em que está a prestes a ser descoberto, acuado em um canto escuro, com destaque para a expressão de pavor em seus olhos, chegam a torna-lo vítima do caos que seus atos originaram. O ápice de tal inversão de papéis se concentra, contudo, na sequência do julgamento extraoficial pelo qual o assassino é submetido. Acossado por multidão que odeia, Lorre, torna-se indefeso, infantiliza-se, tornando, ele próprio, uma criança frente ao opressor.
Quem é herói, quem é vilão na multidão irracional? Em Fúria (1934), primeiro filme em solo americano do diretor, a questão que permeou as outras duas produções ganha contornos ainda mais destacados. Na história, o jovem Joe Wilson é confundido com o chefe de uma gangue de sequestradores que havia raptado e matado uma mulher em uma pequena cidade do interior. Durante uma viagem que o levaria a esposa, a quem não via há muito tempo (note a sensibilidade e romantismo dessa primeira fase do personagem), ele é parado e levado para uma delegacia. A notícia sobre a prisão do suposto assassino se espalha pela cidade e uma multidão enfurecida se dirige ao local para linchar o criminoso. Mesmo convencido da inocência de Joe, o xerife não consegue acalmar a população, que incendeia o prédio com o homem dentro.
Na cena do incêndio, os enquadramentos nos rostos dos linchadores tomados de prazer ao assistir o fogo destruindo a delegacia é a evidência máxima da bestialização da massa corrompida pelo ódio, que não discute a possibilidade de inocência do acusado. A barbárie vira uma grande festa, que transforma Joe, sobrevivente do incêndio, em um ser sem o amor característico de outrora, tomado apenas pelo ódio em busca de uma vingança que ele próprio não consegue estruturar. Mais uma vez, a fúria em que o ser humano carrega consigo, e que explode em meio a um grupo comum, não permite mais saber distinguir quem é herói quem é vilão.
Ao se chamar a atenção para esse aspecto da obra de Fritz Lang, fica uma reflexão sobre como reinvindicações comuns a toda sociedade devem ser trabalhadas para não se tornarem justificáveis. Sobre como ideais comuns podem relativizados pela condita irracional das massas tomadas pelo instinto em vez da razão. Quantas vezes não vemos atitudes odiosas encontrando inflamados defensores em combate a posturas radicais de grupos obstinados? O pesadelo de Lang é, na luta contra o inimigo comum, é nos bestializarmos, e tornar, a nós mesmos, em um perigo muito maior.