Beleza Americana tornou-se um verdadeiro marco
A década de 1990 foi extremamente prolífica para o cinema Hollywoodiano. Tivemos filmes como Fargo, Pulp Fiction, Forrest Gump, entre outros. Porém, poucas obras dessa década são tão completas como nosso filme título de hoje. A estreia do diretor Sam Mendes e do roteirista Alan Bell abocanhou nada menos do que 5 Oscars, tornando-se um dos melhores e mais completos filmes da década, junto do cultuado O Silêncio dos Inocentes.
Neste artigo, proponho-me a analisar alguns aspectos gerais de Beleza Americana, e mostrar porque considero este um filme completo.
Direção
Beleza Americana conta a história de Lester Burnham (Kevin Spacey) utilizando um tema universal. Quem de nós nunca passou ou não conhece pessoas que passam pela mesma situação do protagonista? A busca pela real felicidade é constante na vida de muitas pessoas, e é exatamente por isso que Sam Mendes se preocupa em não deixar explícito onde se passa o filme. Somos levados de ponta a ponta pela história, mas em nenhum momento sabemos em qual local estamos, potencializando assim a universalidade do tema abordado.
E isso nos leva à mais um ponto interessante das escolhas do diretor. Começamos e terminamos o filme numa mesma sequência (a tomada aérea do bairro). A diferença é que, no início, a câmera avança nos mostrando o montante de casas e nos leva à Lester. Quando a projeção termina com o memorável monólogo do protagonista em voice over, temos a mesma tomada aérea, mas, dessa vez, com a câmera recuando, como se já tivesse contado o que queria nos contar e, agora, estivesse nos tirando daquele lugar. Não pude deixar de lembrar do icônico Rastros de Ódio, de John Ford, em que abertura e encerramento têm uma coesão narrativa fantástica.
Cena de abertura do filme
Além dessas escolhas inteligentes, Sam Mendes, apesar de ser sua estreia como diretor, se mostra bem consciente durante as duas horas de filme. Os enquadramentos, por exemplo, sempre complementam a narrativa. Tome como exemplo a cena em que Lester está falando com seu supervisor, Bad Dupree, no escritório do mesmo. Dupree é enquadrado num plano próximo (do tórax para cima), enquanto Lester aparece em um plano aberto. Isso potencializa o quanto o supervisor é maior que Lester – até que Lester o confronta, falando sobre o Sr. Flournoy, que usou o dinheiro da empresa para pagar prostitutas. Nesse momento, Lester é também enquadrado num plano próximo, igualando-se ao supervisor em tamanho na cena.
Tema e Simbolismos
Qualquer análise de Beleza Americana que não fale sobre a discussão temática proposta deve ser jogada no lixo. Considero este um dos filmes mais focados no tema abordado, e um dos que melhor exploram sua mensagem. As flores, constantemente vistas durante o filme, simbolizam a beleza. E por isso, é interessante notar como alguns personagens são relacionados à mesma.
Carolyn (Anette), esposa de Lester, é vista pela primeira vez cortando uma flor de seu jardim para colocar num vaso em sua casa. Quando tiramos uma rosa de um jardim e a colocamos em um vaso, ela continua viva e bela, mas nunca mais será a mesma. Sendo assim, o filme quer nos dizer que, para Carolyn, a beleza está na superficialidade; Lester, por sua vez, é constantemente visto ao lado dos vasos de flores de Carolyn, potencializando como o mesmo está cercado e sufocado pela superficialidade que a esposa tanto presa; Angela Hayes (Mena Suvari), a amiga da filha de Lester, protagoniza algumas das cenas mais famosas do filme, as de fantasia sexual do protagonista. É interessante notar que em todas elas vemos apenas pétalas de rosas.
A dança de Angela
A beleza que Lester tanto enxerga em Angela não é uma beleza completa (o que descobrimos mais para o final) e nem aquela da qual ele precisa. É apenas uma fantasia inocente de uma típica paixão a primeira-vista adolescente, na qual Lester se encontra.
Roteiro
Nenhuma dessas boas características citadas seriam possíveis sem o fantástico roteiro de Alan Bell. O roteirista consegue, por exemplo, estabelecer previamente um estereótipo e logo, subverte-lo, dando profundidade à cada um dos personagens, condensando ainda em duas horas, sem tornar a narrativa confusa.
Carolyn não é só o estereótipo da mulher materialista. E sabemos disso através da tocante cena do choro da personagem, diante de mais um dia de fracasso na venda de uma casa. Sabemos que seu maior desejo é alcançar o sucesso e seu maior medo é fracassar. Seu desprezo ao marido é justamente por este ser tão fracassado (como ele mesmo se assume) e não compreender a busca incessante da matriarca pelo êxito.
Coronel Fitts (Chris Cooper), por sua vez, é previamente apresentado como o ex-militar durão. Isso vai sendo subvertido conforme a narrativa caminha para o fim, sendo possível ainda interpretar algumas ações suas como sendo as de um homossexual reprimido. A cena em que ele beija Lester, numa primeira interpretação, pode ser uma checagem do coronel se Lester gostaria ou não. Mas aprofundando-se um pouco mais, pode-se chegar à um outro ponto de vista.
Ora, se Lester recusa o beijo e diz que o Coronel pode ter tido uma visão errada dele, por que Frank voltaria na mesma noite para mata-lo? A recusa de Lester não seria prova o suficiente de que ele não era gay? Pode-se interpretar que, ao dizer que seu casamento era uma fachada, Lester tenha acabado descrevendo a vida inteira de Frank Fitts e, assim, despertado o rancor que o coronel tem de si mesmo, fazendo-o voltar para matar Lester como um ato de explosão de sua fúria reprimida contra algo que representa a si próprio.
O beijo de Fitts
Falando na morte de Lester, como não se emocionar com o triste (ou não) fim que sua vida teve? Além do extremo carisma de Kevin Spacey e de como Lester é parecido com muitos espectadores que viriam a assisti-lo, um ponto forte da empatia que sentimos pelo personagem é a narração em off, que nos aproxima de suas sensações, desejos e dificuldades. Quando o mesmo diz “É como se eu estivesse em coma durante 20 anos e só agora acordasse”, entendemos seu despertar, seu gatilho para a busca da real felicidade. Felicidade essa que o protagonista só encontraria em seus últimos minutos de vida, quando descobre que a filha está amando e, finalmente, sente aquela leveza que tanto buscou.
Atuações
Tendo um ótimo roteiro e uma ótima direção, o elenco, por sua vez, não decepciona. Kevin Spacey, em uma de suas melhores interpretações, nos trás um personagem problemático e, por vezes, reprovável. Mas ainda assim consegue nos aproximar do mesmo. Tudo o que ele precisa dizer está em suas expressões. O olhar e sorriso de triunfo quando confronta a esposa na cama, o olhar de admiração enquanto o jovem Ricky (Wes Bentley) confronta seu patrão e, principalmente, seu sorriso lacrimejante diante da pergunta de Angela se ele está feliz. Se retirássemos todas as falas de Kevin Spacey, ainda assim, poderíamos entender cada sensação e desejo do personagem.
Já Annete Bening, se empenha em criar uma personagem multidimensional. Como citei acima, ela está longe de ser um estereótipo. E se, por muitas vezes, sua atuação parece caricata, faz parte do propósito sobre a personagem. Ela poderia ser apenas a mulher americana materialista de classe-média. Mas não é, graças aos seus momentos mais íntimos. Assim como o marido, ela tem um desejo, mas não sabe mais como alcança-lo.
Se Lester deseja felicidade e melhora de sua autoestima, Carolyn deseja sucesso em sua carreira. Ao encontrar o bem sucedido Buddy Kane (Peter Gallagher), ela enxerga a oportunidade de pegar uma carona rumo ao sucesso e, de certa maneira, é atraída sexualmente pelo mesmo. É bom notar que, quando Carolyn começa a ter um caso com ele, não é por interesse, mas sim, pela real atração. Ela finalmente encontrou alguém que não só a entende, como pensa igual. É óbvio que assim, ela não encontraria felicidade alguma, pois, de todos os personagens do filme, Carolyn, junto do Coronel Fitts, são os únicos que não a encontram, pois não chegam a descobrir onde devem procurar.
O surto de Carolyn
E se o Coronel Frank Fitts não encontra a felicidade, é porque esta já sumiu de sua vida há muito. Tendo uma esposa doente e um filho problemático, o personagem ainda lida com seus conflitos internos e sua ambiguidade sexual, se analisarmos como propus acima. Ao ser visitado pelo casal gay, ou encontra-los correndo na calçada, sua repulsa é evidente. E ao ver seu filho sair pela porta, mesmo sabendo que o mesmo só disse ser gay para confrontá-lo, ele torna evidente sua dor pelo fato de perceber que realmente é um “velho triste”, como Ricky diz. O ator Chris Cooper é hábil ao transpor todas essas emoções pelas quais seu personagem passa.
O elenco mais jovem também cumpre bem sua missão aqui. Mena Suvari nos trás uma Angela Hayes inicialmente metida e segura de si, mas que, posteriormente, nos revela usar isso para camuflar sua insegurança e medo de ser normal. Thora Birch interpreta bem a insegura Jane Burnham, que, inicialmente julgando Ricky como estranho, passa a perceber como este lhe mostrou a verdadeira beleza. E é interessante notar que, durante o filme, a personagem tem o sonho de fazer cirurgia em seus seios, que, segundo ela, são feios. Porém, em um dos momentos chaves da projeção, ela tira a blusa fazendo um topless de casa, para o namorado, como se estivesse dizendo: “sim, finalmente descobri que sou bonita assim”.
E Ricky Fitts é o centro moral da história. O personagem que todos acham estranho, é o que mostra à Lester, Jane, Angela e Frank, seu pai, o verdadeiro significado de beleza e felicidade. Wes Bentley até se deixa levar pelo clichê algumas vezes (como na cena em que entorta a cabeça para parecer fascinado com a morte de um certo personagem), mas ainda assim, consegue transmitir esta dualidade contraditória. Ele é estranho, porém normal.
Montagem e Edição
Com uma história cheia de personagens, em que cada um tem sua distinta profundidade, é muito importante o foco na edição e montagem. Aqui, ficamos o tempo necessário com cada personagem. Tempo suficiente para nos aproximarmos deles, mas sem perdermos nosso protagonista de vista. É imprescindível a habilidade narrativa de um montador para tal. As cenas de fantasia de Lester com Angela também se tornam interessantes graças à edição. Tomando a decisão de repetir o momento, como num típico comercial de hambúrgueres, o diretor enfatiza o toque em Angela como marcante para Lester, tornando o momento completamente cômico. Como não rir dessa viagem do personagem?
A cena do hamburger
A sequência do clímax é também fascinante. Rever o momento do tiro através da perspectiva de cada personagem é essencial para redobrar a tensão. Posteriormente, algo também interessante feito pela edição é a reconstrução das memórias de Lester. Vista da esquerda para a direita, dá a impressão de cronologia daqueles eventos, complementando com a alternância entre realidade e memória, potencializando a dramaticidade do momento.
Trilha Sonora
Aqui, apesar do interessantíssimo tema principal, são usadas duas músicas muito bem escolhidas para momentos-chave do filme. Quando Lester começa a tomar atitudes sobre sua vida, a música que escuta no carro é “American Woman”, que narra seu momento de busca por redenção. Já Carolyn, quando se sente determinada a não permitir que a impeçam de alcançar seu objetivo, dirige ouvindo “Don’t rain on my parade”. O tema principal do filme começa com uma nota interminável que potencializa a tensão e, ao mesmo tempo, consegue misturar a melancolia nisso. Contrastando, claro, com o tema de Lester, que tem semelhança à notas de típicas músicas orientais, potencializando talvez seu sentimento de querer lutar.
Fotografia
Por último, mas com certeza não menos importante: a fotografia. São decisões tomadas por Conrad Hall, em conjunto com Sam Mendes, que tornam muitas coisas no filme possíveis e digestivas. A transição do tom, por exemplo. A partir do terceiro ato, o filme passa de uma comédia dramática para um drama sombrio carregado de suspense. Isso se torna aceitável graças ao conjunto da boa direção com a boa cinematografia. O uso de sombras se torna muito mais excessivo, tomando personagens como o coronel Fitts por completo, em seus momentos mais sombrios.
Hall escolhe com maestria o uso do foco profundo na cena do escritório. Com tantas pessoas e luzes, fica claro o quão sufocado o personagem está em seu emprego. Complementando com o foco profundo, a câmera ainda é usada constantemente em contra-plongée, mostrando o teto e potencializando este aprisionamento de Lester. Uma óbvia inspiração em Cidadão Kane (1941).
Manual de como sair do seu emprego
Ainda sobre a fotografia, o uso de luz é muito interessante e significativo. Aqui, a luz representa o quão completos estão. Durante a projeção, seus rostos são poucas vezes vistos completamente iluminados. Mesmo que fraca, existe sombra ali. Somente quando Lester vislumbra a fotografia da família, em seu ápice de felicidade, não vemos sombra alguma em seu rosto.
Beleza Americana é um filme que, quanto mais assistimos, mais gostamos. Filmes bem planejados, preparados e executados tendem a nos surpreender cada vez mais. Não o coloco como o melhor dos anos 90, o que seria pretensão minha definir, mas o coloco entre os melhores. Os mais completos. Uma estreia cultuada, premiada e compreensivelmente marcante.