Erzsébet Bathory, um monstro da vida real
O debate a respeito da natureza da maldade vem de longe. Como explicar determinadas ações bárbaras cometidas entre seres humanos? Estabelecer onde termina uma condição patológica e começa o puro sadismo perverso é um desafio, ficando pior quando se trata de pessoas que viveram em outros tempos. Neste caso, separar lenda e vida real é mais um problema. De qualquer forma, a imagem da Condessa Erzsébet Bathory está inevitavelmente associada a torturas e assassinatos dos mais atrozes contra pessoas inocentes. Muito disso teria sido motivado por pura vaidade.
Lançada este ano no Brasil pela Zarabatana Books, a HQ Erzsébet, do artista português Nunsky, foi originalmente publicada em território lusitano pela Chili Com Carne. Traz um retrato que não se pauta na busca por algum tipo de revisão histórica ou aprofundamento psicológico. Com cerca de 140 páginas, esta edição de capa cartonada com orelhas nos mostra um desfile de todo tipo de crueldade que costuma ser creditado à Condessa. Não por acaso, na própria contra-capa, encontramos uma comparação da mesma com outro tipo famoso: Vlad, O Empalador, que – conforme você já deve saber – inspirou a criação do vampiro mais famoso do mundo.
Bathory viveu na Hungria, entre os séculos XVI e XVII, dentro do violento contexto da guerra contra o Império Otomano. Jovem esposa do Conde Ferenc Nádasdy, que passava longos períodos longe de seu castelo por conta da carreira militar, era obrigada a administrar a criadagem. Consta que suas maldades começaram no trato com os empregados, punindo-os de forma extrema sempre que havia pretexto. Por exemplo, alfinetes embaixo das unhas e nos mamilos, além de aproveitar os invernos rigorosos para obrigar suas vítimas a andarem nuas na neve, despejando água nelas até congelarem.
No entanto, o ponto interessante neste rosário de práticas hediondas é a associação da figura da Condessa com sangue. Chamando atenção por sua beleza, ela temia a velhice. Um dia, ao ferir uma empregada que puxou seu cabelo ao penteá-lo, recebeu respingos de sangue em seu rosto. Isso teria bastado para que percebesse um tipo de propriedade rejuvenescedora no líquido, o que motivou uma série de assassinatos de jovens empregadas. Exagero ou não, esse é o legado de Erzsébet Bathory.
Além de abrir mão de tentar explicar o que leva alguém a ser assim, Nunsky também evitou a criação de qualquer tipo de arco dramático para sua protagonista ou qualquer outro personagem. Não existe uma jornada propriamente dita e nem surpresas para quem já conhece a história dela, mas a narrativa em Erzsébet é eficiente e cativante dentro desta proposta. O autor propõe uma viagem pelas lembranças dela, quando seu destino já estava selado, iniciando a história no momento em que ela espera seu noivo voltar da campanha.
Retrato da desumanidade de Bathory
A menina insatisfeita e infeliz, vivendo na propriedade de seu noivo com sua futura sogra, até inspira uma certa compaixão. O contraste é inevitável quando ela tem oportunidades de exercitar sua maldade. A partir daí, o trabalho do autor foi a representação gráfica das atrocidades perpetradas por ela e seus cúmplices. Mesmo com um traço estilizado, Nunsky é bem sucedido no retrato da agonia das vítimas. Difícil que alguém leia e não sinta algum incômodo ao ver ferros em brasa tocando partes íntimas, entre outras coisas…
As linhas pesadas nas páginas em preto e branco, ocasionalmente utilizando tons de cinza, com hachuras fortes, estão a serviço do tipo de história contada. No entanto, o traço simplificado, junto à narrativa, consegue tornar o conjunto mais palatável, capturando a atenção e conferindo dinamismo ao álbum. As influências da arte em alto contraste de Charles Burns (Black Hole) e Love & Rockets* são evidentes e comentadas no prefácio. Esses atributos tornam a leitura rápida, o que também é graças ao nosso natural fascínio mórbido por seres humanos capazes de monstruosidades.
*(Leia a resenha de Sopa de Lágrimas)
A ausência de um arco dramático ou qualquer desenvolvimento de personagens é um recurso que aproxima Erzsébet do terror clássico italiano, menos preocupado com o roteiro do que com a experiência. A intenção parece ter sido trazer os relatos mais verossímeis, ocasionalmente com algum toque de fantasia, o que é uma opção interessante. Ainda assim, mesmo que não decepcione na fluidez, a sensação ao final é que faltou algo neste caldeirão. A relação que a história estabelece com o leitor é distante, já que não há qualquer personagem pela qual torcer ou temer. Claro que a Condessa é aquele tipo que adoramos desprezar, mas o interesse que ela gera ao longo das páginas não é bastante para deixar de observar isso.
Com um saldo final positivo, Erzsébet vale a experiência. Quem tiver interesse por personalidades como a de Bathory será recompensado nesta leitura. Muito provavelmente, caso o seu primeiro contato com ela for a HQ, vai gerar uma vontade forte de pesquisar mais sobre essa figura histórica terrivelmente atrativa. A pergunta do primeiro parágrafo não será respondida, mas a atração por esses monstros da vida real continuará a existir.