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O lado escuro de Roald Dahl – A história e as influências do autor infantil!

Autor galês Roald Dahl era conhecido pelos temas controversos e humor lúgubre

Era uma vez uma pequeno orfão que foi mandado para viver com suas tias. Elas eram um par de mulheres sádicas, as irmãs, e, ao invés de consolar e abrigar o garoto, elas abusaram dele e o escravizaram, ofendendo-o e fazendo-o passar fome. Mas ele teve sua vingança, literalmente esmagando as duas enquanto finalmente escapava, em direção à aventura e uma vida melhor. Não parece muito com uma trama para um best-seller entre livros infantis, mas e se eu te dissesse que o seu veículo de fuga era uma colossal fruta de casca aveludada?

Artigo da BBC sobre Roald Dahl

Roald Dahl (1916-1990)

James e o Pêssego Gigante (James and the Giant Peach) surgiu de histórias de ninar que o escritor galês Roald Dahl contava para suas filhas. Àquela altura, ela já havia visto o sucesso de forma moderada, com suas histórias curtas para adultos – contos perversos com macabros encerramentos – que eram publicados em revistas como a New Yorker e a Playboy. James e o Pêssego foi o seu primeiro trabalho para crianças, mas deixou um número considerável de leitores adultos profundamente perturbados pelo caminho. Apesar de o livro ter sido publicado nos EUA em 1961, Dahl teve que esperar até 1967 antes que uma editora britânica quisesse arriscar e, mesmo assim, ele teve que arcar com metade dos custos – uma estratégia exageradamente cautelosa quando o livro, depois, se tornou um best-seller.

Ele continuou escrevendo, completando mais 14 livros para criançashistórias cheias de gula e flatulências, em que esposas alimentavam seus maridos com vermes e os jovens eram comidos por gigantes, e transformados em ratos por bruxas carecas e sem dedos. Vilões eram profusos; tão maus quanto eram ignorantes, eles se acumulavam sobre os pequenos protagonistas, girando-os no ar pelo seu rabo-de-cavalo, ou banindo-os para lugares como A Prisão, as prateleiras pregadas de punição da Srta. Trunchbull, em Matilda.

Hoje, títulos como O Fantástico Senhor Raposo, O Bom Gigante Amigo* e Matilda – que foi lançado apenas dois anos antes de sua morte, com 74 anos de idade – aparecem regularmente nas listas de livros infantis mais populares da história. Somando-se todas as obras, seus livros já venderam mais de 200 milhões de cópias mundialmente. Apesar disso , as controvérsias sobre suas obras nunca se desfizeram. Décadas após sua publicação, James e o Pêssego Gigante ainda é bastante criticado pelo seu racismo (lembra a parte em que o Gafanhoto declara “Eu prefiro ser frito vivo e comido por um mexicano”?), linguagem chula (a palavra “ass”  – bunda, ou rabo – aparece ao menos três vezes), referências a drogas e bebidas e até mesmo insinuações sexuais – sem mencionar sua alegada promoção da desobediência e – como não poderia deixar de ser com críticos conservadores – comunismo.

*(Leia também a crítica da recente adaptação cinematográfica)

Artigo da BBC sobre Roald Dahl

Ilustração de Quentin Blake, cujo traço é associado às obras de Roald Dahl. As demais que aparecem neste artigo são do mesmo artista.

Chocolate e Bruxas

É muito fácil de divertir com tantas respostas exageradas dos pais, mas tente olhar de perto a escrita de Dahl para as crianças, e você encontrará alguma coisa para ofender quase todo mundo. Se ele era um intolerante, ao menos ele odiava à todos da mesma forma. Professores tendem a ser vilanescos, e, mesmo quando benignos, falham em compartilhar qualquer sabedoria verdadeira. Os Oompa Loompas de A Fantástica Fábrica de Chocolates foram descritos originalmente por Dahl como pigmeus negros com gritos de guerra. Personagens femininas eram sempre muito carinhosas ou muito perversas, sem nada entre isso, e em Revolting Rhymes a história de Cinderela, aquele conto de fadas sobre uma garota inocente e abusada pela família, se torna a história de “uma vadia imunda”.

Maria Nikolajeva, professora de literatura infantil na Universidade de Cambridge, contesta a ideia de que existe alguma escuridão nos livros de Dahl para as crianças. “Ele foi um dos mais criativos e leves escritores para crianças”, ela reforça. Mas, apesar de todas as brincadeiras e linguagem ágil e acrobática da sua prosa, ela aceita que existem problemas com a sua visão. Veja o caso d’A Fantástica Fábrica de Chocolates.

Wonka é um vegetariano que só come coisas saudáveis, mas seduz crianças com seus doces. É altamente imoral”, diz a professora. E então tem As Bruxas, cujo narrador infantil, tendo sido transformado em um rato, decide não retornar a forma humana, porque teme viver mais do que sua amada avó. Ele prefere morrer com ela, conforme será permitido por sua limitada vida de roedor.Está é uma negação do amadurecimento e da moralidade, mas a mortalidade é um dos aspectos que nos torna humanos”aponta Nikolajeva. “Dizer aos jovens leitores que você pode escapar de crescer morrendo é algo dúbio – chegando ao ponto do encorajamento do suicídio – sendo assim, tanto uma falha estética como ideológica”.

Artigo da BBC sobre Roald Dahl

De toda forma, não há como negar que Dahl sabia muito bem o que o seu público alvo queria: chocolates e bruxas e – usando um pouco de “Gobblefunk”, o idioma baseado em neologismos criado para o seu Bom Gigante Amigo – o tipo de “maldacidade”, “assustadorismo” que faz com que as “triposas” em nós se remexam “repulsionadas felizminas”. “Crianças adoram nojeiras”, diz Nikolajeva. A repulsa serve como “uma importante função cognitiva-afetiva: nós sabemos que é nojento, e esse conhecimento nos torna superiores. É saudável. Mas precisa ser nojento em uma combinação com humor. Porque violência extrema não é saudável. Mas Dahl nunca é violento, nem mesmo com as crianças malvadas d’A Fantástica Fábrica de Chocolates“.

Escuridão, na falta de palavra melhor, sempre foi um ingrediente secreto – ou não tão secreto – na literatura infantil, seja nos contos dos irmãos Grimm e Heinrich Hoffman, ou no Senhor das Moscas de Golding e em – porque não – Jogos Vorazes. O psicólogo infantil Bruno Bettelheim explicou no seu estudo seminal, A Psicanálise dos Contos de Fada, que o macabro nas histórias infantis servem como uma importante função catártica. Ele escreveu:

“Sem esse tipo de fantasia, a criança irá falhar em entender o seu monstro melhor, e nem lhe são dadas sugestões de como ele pode ganhar maestria sobre ele. Como resultado, a criança permanece desamparada com suas piores ansiedades – muito mais do que se a ele tivessem sido contadas histórias que dão corpo e forma para essas ansiedade – e que também mostram como superar esses monstros”.

Roald, o Podre

Não é difícil saber de onde Dahl pode ter tirado sua própria escuridão. Tendo perdido sua irmão mais velha e seu pai quando tinha apenas três anos, ele foi mandado para um internato quando tinha nove anos. O primeiro volume das suas memórias resgata em grandes detalhes a inclinação do diretor para punições tão severas que elas arrancavam sangue.

Como um jovem piloto da Royal Air Force da Inglaterra, Dahl quase morreu. Inválido após um pouso forçado no Deserto Ocidental, ele passou o resto da guerra nos EUA, seduzindo herdeiras e viúvas ricas em nome da contra-inteligência. Seu primeiro casamento, com a bela e famosa atriz Patricia Neal, teve um final longe de ser feliz. O casal perdeu sua primogênita para uma doença, e seu último filho restante sofreu danos cerebrais após um acidente de carro. Alguns anos depois, Neal sofreu uma série de AVC’s.

Artigo da BBC sobre Roald Dahl

Foi Neal que cunhou o apelido “Roald the Rotten” (Roald, o Podre), referindo-se à uma raia má e dispéptica que ela testemunhou bastante. Ele a traiu, e o longo caso – que eventualmente acabou com o casamento – era com uma amiga dela. Ele podia ser um homem bastante desagradável fora de casa, também. A despeito de seu crescente sucesso, ele era mesquinho com o fato de ser um autor infantil. Assim como ele também nunca fez questão de esconder seu antissemitismo. Em 1983, ele anunciou para o New Statesman que Hitler teve suas razões para exterminar seis milhões de homens, mulheres e crianças. Ele disse:

“Existe um traço de personalidade judia que de fato provoca animosidades. Quero dizer, sempre existe uma razão para a qual algo ‘anti-alguma coisa’ se prolifere em qualquer lugar; mesmo um imundo como Hitler não os escolheu sem alguma razão“.

Leia o bastante dessas linhas (e existem muito mais delas por aí) e o horror alegre das narrativas de Dahl já não passarão de forma tão simples. Nós deveríamos deixar isso arruinar sua escrita para nós? Nikolajeva é inequívoca:

Francamente, eu não me importo com escritores enquanto pessoas reais. Se Dahl tivesse sido um contador de histórias doce e benevolente será que ele teria sobrevivido? Quem quer histórias doces e benevolentes?”

Existe certamente um elemento de provocação em muito de sua perversão, tanto dentro quanto fora das páginas. Assim como as vidas de pessoas como Lewis Carroll, Margaret Wise Brown e C.S. Lewis ilustram, para se escrever brilhantemente para crianças, o autor precisa manter um certo elemento da infância. Algumas vezes, isso se mescla com infantilidade. Citando o próprio Dahl, o autor infantil “precisa gostar de truques simples, piadas e charadas, e outras coisas infantis”.

Mas também é válido nos lembrarmos disso: apesar de a infantilidade ter vindo a se tornar um conjunto de referências positivas associadas as crianças, na sua forma mais básica, ela simplesmente significa lembrar uma criança. E como o magnífico Maurice Sendak, autor de Onde Vivem os Monstros, observou:

Em termos simples, uma criança é uma criatura complicada que pode te deixar louco. Existe uma crueldade na infância, uma certa raiva“.

Se os livros de Dahl contém ao menos uma mensagem para os adultos, é o lembrete de que o mundo das crianças não é somente doçura e luz; ele também contém sombras – extravagantes, assustadoras e divertidamente perversas.

Esse artigo foi publicado originalmente pelo site da BBC.

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