A tradição do pulp no livro Crimes Fantásticos
Uma pequena aulinha antes de irmos para o que realmente interessa: as publicações denominadas pulp nasceram em 1896, quando a publicação voltada para garotos (olha só que machismo!) Argosy tornou-se uma revista que compilava contos destinados ao público adulto, que iam do romance água com açúcar até a mais violenta das histórias de gângsteres. Caso você ainda não saiba, a denominação vem do papel barato que era usado neste tipo de publicação, feito com a polpa da celulose, diminuindo os custos. Quem vos escreve aprendeu isso no prefácio do livro Crimes Fantásticos, uma das últimas publicações da editora Argonautas, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Escrito pelo pesquisador especializado em quadrinhos Marco Aurélio Lucchetti, o tal prefácio é educativo sem ser chato, perfeito para fazer as honras de uma coletânea de contos focados no estilo hard-boiled (se você lembrou do título original do clássico dos anos 90 Fervura Máxima, dirigido por John Woo, está no caminho certo!) e que convida o leitor para mergulhar numa atmosfera de crimes, femme fatales e mistério. Ou seja, os bons tempos do pulp estão de volta.
Polpa forte
Não é de hoje que a Argonautas, tocadas pelos também autores Duda Falcão (confira a entrevista com ele) e Cesar Alcázar, se dedica a edições temáticas com ares pulp. A coleção Sagas, que teve início em 2010 e seguiu publicando até 2014, já tinha temáticas de western, fantasia, ficção-científica capa e espada. Mais pulp que isso impossível! Mas voltemos a Crimes Fantásticos. Além de Duda e Cesar, o livro conta com a participação de Nikelen Witter (lembram dela em Sussurros da Boca do Monte?), Mariana Portella, Christopher Kastensmidt e o mestre R. F. Lucchetti, responsável por centenas de contos e romances pulp desde os anos 1960 e também por alguns roteiros para o personagem Zé do Caixão, do outro mestre José Mojica Marins. Em Mamãe Tinha Razão, ele utiliza um dos seus temas preferidos: mulheres belas e…bem perigosas.
O final surpreendente (não adianta pedir que não tem spoiler!) é só o aroma do banquete que vem na sequência. Admirador confesso do bom e velho bang-bang (quem conhece, sabe que ele é a cara do personagem do spaghetti western Sartana), Cesar Alcázar escolhe a cidade de Chicago para ser o pano de fundo de Meu Velho Kentucky Blues, que tem como protagonista um cowboy que vai para a cidade grande tentar a vida como jogador profissional. Poderia ser o roteiro de um filme com Charles Bronson ou James Coburn no elenco, mas é um conto escrito por um gaúcho. E o cinema ainda aparece numa clara referência a O Destino Bate à Porta (1946), filme noir dirigido por Tay Garnett e protagonizado por Lana Turner e John Garfield, que por sua vez é baseado no conto de James M. Cain (ufa!).
As detetives
As duas garotas da turma de autores não deixaram por menos e são responsáveis pelas histórias mais sombrias de Crimes Fantásticos. Em Imagem Inversa, Nikelen mistura fantasia e horror para nos apresentar inspetora Marielena e seu peculiar poder de ver o mundo invertido. Não bastasse isso, ela ainda convive com sombras que fazem bem mais que assustar quem passa por um beco escuro. Puro expressionismo alemão! A carioca Mariana, por sua vez, é a mulher dos corpos. Mortos Insepultos tem Eve Müller como protagonista, uma detetive que faz as vezes de vilã entre um cemitério e outro em busca de pistas.
Para os outros dois rapazes da coletânea, a inspiração veio do espaço e de um cara que sabia muito prender seus leitores. As Águias de Dois e Meio, do americano radicado em Porto Alegre Christopher Kastensmidt, tem viagem no tempo e memórias de infância, já que o personagem central vive no fim do século XIX e acaba indo parar em 1985. De Volta Para o Futuro do avesso? Quase isso, só que mais aterrorizante.
E se as publicações pulp deixaram um legado para a humanidade, ele se chama H.P. Lovecraft. Seus primeiros escritos chegaram ao público na revista Weird Tales, fundada em 1923 pelo jornalista J. C. Henneberger. Duda Falcão também deu seus primeiros passos como escritor em compilações de literatura de horror e presta homenagem a Lovecraft em Abductor, focando em um monstro que surge das profundezas para sugar o sangue das crianças de uma cidadezinha. Bicho papão é para os fracos!
Quem tornou-se leitor ávido por meio dos livrinhos baratos, de páginas frágeis e capaz coloridas, vai desfrutar de uma gostosa nostalgia já no primeiro toque em Crimes Fantásticos. A ilustração de Eduardo Monteiro faz jus ao clima impresso em cada linha de suas 128 páginas. Se o papel é de melhor qualidade, é apenas um detalhe. Carregá-lo embaixo do braço por aí vai garantir o charme dos velhos tempos até para quem ainda engatinha nas palavras.